"Curvo-me perante Navalny", disse um dos candidatos a primeiro-ministro. Navalny foi opositor de Putin mas também comparou imigrantes a cavidades dentárias (e defendeu a anexação da Crimeia)

Homenagens a Alexei Navalny (Associated Press)

“Recomendo a higienização. Todos [os que estiverem] no nosso caminho devem ser cuidadosa mas claramente removidos através da deportação.” A frase tem 16 anos e foi dita por Alexei Navalny, que aparecia vestido de dentista a comparar cavidades dentárias a imigrantes, num vídeo partilhado no seu canal de Youtube.

Uma frase que surgiu pela mesma altura de um outro vídeo em que Navalny chamava “baratas” a muçulmanos, defendendo o direito ao porte de arma. Por essa altura já tinha sido expulso do partido liberal Yabloko. A razão? “Atividades nacionalistas”, nomeadamente a participação na Marcha Russa, um encontro anual entre grupos de extrema-direita que têm ideais ultranacionalistas e que defendem mensagens como “A Rússia para os russos étnicos” – é que mesmo depois do fim da União Soviética, a Rússia continuou a ter uma grande percentagem de cidadãos de várias outras etnias (ainda hoje 10% da população é muçulmana).

Navalny “tem sido descrito como um democrata e com uma terminologia como se fosse pró-Ocidental, como se não nos tivéssemos apercebido da atividade intensa entre 2006 e 2013, quando queria afirmar uma posição e abrir um espaço e uma atividade que o fez romper com o partido Yabloko, situado no campo liberal a partir do fim da União Soviética”. Este é o entendimento de Manuel Loff, historiador que explica à CNN Portugal que a figura do opositor russo, agora morto, tem de ser colocada num contexto de 30 anos e que surgiu com o desmantelamento da União Soviética.

Esse contexto, continua o ex-deputado do PCP, carateriza-se por um “neonacionalismo, um nacionalismo russo diferente do do século XX e que contamina todos os setores políticos”.

É nesse sentido que Manuel Loff vê como “excessivas” algumas posturas ocidentais, incluindo de portugueses. A morte de Navalny foi anunciada em plena altura de debates para as eleições legislativas, sendo que todos os partidos com assento parlamentar se expressaram sobre a notícia.

Uma das mensagens mais contundentes foi a de Pedro Nuno Santos, que disse, durante o debate com Mariana Mortágua, transmitido pela RTP, que se curvava perante Alexei Navalny, num vídeo que foi mesmo partilhado pela conta oficial do PS. “Há comportamentos políticos cheios de automatismo. Se Pedro Nuno Santos se quis juntar, como outras forças à direita, é uma atitude que não está informada pela história recente”, diz Manuel Loff.

“Deixa-me perplexo que Pedro Nuno Santos se curve. Não por potencialmente Navalny ter sido vítima de abuso, mas perante a figura de Navalny ao longo dos últimos 20 anos”, sublinha Manuel Loff, lembrando que houve outros protagonistas da política portuguesa a reagir.

Desde logo o ministro da Defesa, que responsabilizou de imediato o governo russo pela morte. “Não nos esqueçamos: é comportamento praticamente automático da NATO e da União Europeia” fazê-lo, continua o historiador, notando um contraste com a “falta de frontalidade crítica no comportamento de outros Estados relativamente a opositores”.

O embaixador Francisco Seixas da Costa admite à CNN Portugal que Navalny “não é um exemplo de um democrata liberal”, mas ressalva que isso não significa que não represente uma postura legítima que congrega muita gente na Rússia, onde “não há nenhuma figura [anti-Kremlin] que tenha mais apoiantes”.

De acordo com o Levada Center, uma organização não-governamental independente baseada em Moscovo, 19% dos russos apreciavam Alexei Navalny. “Percebemos mais a importância de Navalny com a circunstância de o terem matado. Se não fosse assim não tinha sido liquidado. Não há certezas, é verdade, mas há presunção”, aponta Francisco Seixas da Costa, dizendo que, mesmo que não tenha sido assassinado, o facto de estar numa prisão como aquela em que estava, no Ártico, é degradante do ponto de vista físico.

“Se Navalny estivesse numa prisão mais decente, num sitio normal, com mais cuidados… um prisioneiro é alguém que está sob a tutela do Estado em qualquer circunstância. O Estado tem uma responsabilidade maior nesses casos”, acrescenta.

“Não confundam as lutas”

E o nome de Viktor Orbán não vem ao acaso. Manuel Loff diz que, caso tivesse poder para isso, Navalny andaria perto das posições do primeiro-ministro húngaro ou de Jarosław Kaczyński, fundador do partido Lei e Justiça e presidente da Polónia de 2005 a 2010, tendo marcado o mandato por posições mais conservadoras.

“Navalny abandonou o partido e ficou ativo na área do nacionalismo de extrema-direita”, continua Manuel Loff, lembrando críticas de xenofobia, mas também de participação em manifestações e movimentos contra a imigração dos habitantes das ex-repúblicas soviéticas onde há maioria muçulmana.

Tudo “a partir de uma perspetiva de islamofobia”, reforça o historiador, falando de países como Cazaquistão ou Uzbequistão, sendo que ainda hoje há uma forte presença muçulmana na Rússia – veja-se a Chechénia, por exemplo.

“Navalny, nesse sentido, não se distinguia de perfis de líderes da extrema-direita que acabaram por chegar ao poder em vários países e que, no caso da Rússia, disputou o poder com Vladimir Putin no passado de uma perspetiva até mais nacionalista que a do presidente russo”, termina Manuel Loff.

Sobre a Ucrânia, por exemplo, Navalny chegou a defender que a Crimeia era parte da Rússia. Embora tenha reconhecido que a anexação foi feita de forma ilegal, em 2014, o opositor disse, numa publicação no seu blogue, que a região ucraniana “vai fazer parte da Rússia e nunca vai voltar a ser da Ucrânia no futuro”.

Esse tipo de declarações valeu-lhe uma forte crítica da parte ucraniana, que conheceu novos entornos depois de o documentário “Navalny”, produzido pela CNN, ter vencido o Óscar de Melhor Documentário. Uma publicação do chefe de redação do Mezha, um meio de comunicação ucraniano, dá bem conta disso.

Taras Mishchenko escreveu na rede social X que havia uma diferença entre a “luta pela liberdade” e a “luta pelo poder”. A distinção foi feita com uma fotografia da guerra na Ucrânia e o momento em que a família de Navalny subiu ao palco para receber o galardão em Hollywood. “Não confundam [as lutas]”, pediu o jornalista.

Um produto do Ocidente?

A ideia que fica, até porque Navalny não era uma figura assim tão consensual na Rússia, é que a morte do opositor russo teve muito mais impacto no Ocidente do que para lá das fronteiras da NATO.

Francisco Seixas da Costa admite esse cenário, em que os ecos de lamento da morte de Navalny servem mais para fragilizar Putin do que propriamente para exultar o opositor morto.

“Para quem na Europa olha para a situação russa que, tendo matriz democrática, evolui para a autocracia e praticamente ditadura, é normal que se sublinhe o desagrado”, diz o embaixador, lembrando que corre em paralelo uma guerra na Ucrânia e que a tensão entre Rússia e bloco ocidental tem aumentado desde 24 de fevereiro de 2022.

“É uma posição que vai mais contra Putin que a favor de Navalny”, conclui, dizendo que são duas coisas que se juntam: uma atitude anti-Putin e anti-regime e um símbolo de rejeição dessa mesma autocracia.

No vídeo abaixo Navalny aparece a defender o uso do porte de arma.

Manuel Loff não vê o opositor como algo fabricado pelo Ocidente, mas admite que há uma confusão, sobretudo nos países do leste da Europa, que ainda têm uma memória de uma União Soviética liderada à extrema-esquerda, o que os faz temer apoios a opositores do Kremlin que venham da ala mais à esquerda.

“Os mais atentos são os que fazem fronteira com a antiga União Soviética e cuja visão da Rússia continua a ser confundir Putin com Estaline e União Soviética”, diz o historiador, frisando que os partidos à esquerda “não servem como símbolos da oposição democrática a Putin”.

Serve, em vez disso, um “nacionalista russo como Navalny, que evolui na direção de oposição a Putin com elogio ao modelo ocidental”. “Do ponto de vista ideológico é ambíguo”, refere Manuel Loff, porque há uma luta entre “duas versões do nacionalismo russo” – entre Putin e Navalny -, pelo que não se deve transformar o ativista agora falecido num mártir da democracia. Isso “parece excessivo”.

Em todo o caso, Manuel Loff vinca que, caso se venha a provar que a morte de Navalny não foi acidental, o opositor de Putin é uma “evidente vítima política do regime”.

Embora se tenha retratado de algumas posições – fê-lo quando sugeriu que a Rússia tinha razão na guerra contra a Geórgia, por exemplo -, Navalny nunca apagou os vídeos que fez, incluindo aqueles que o conotavam com a Marcha Russa. Leonid Volkov, outrora chefe do gabinete de política regional do russo, contou à New Yorker que os vídeos não foram apagados “porque são um facto histórico”.

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