Opinião de João Rosado. Polémico fora de campo, o internacional turco jogou à vontade, com toda a estrutura a ficar mais em causa do que Roger Schmidt.
Kokçu dá um 10… a zero
Se tivesse nascido na Argentina, provavelmente tudo teria sido mais fácil para Orkun Kokçu.
E se tivesse nascido em Rosário, o caminho não tinha sido fácil, teria sido percorrido numa espécie de autoestrada sem controlo de velocidade.
Na mais conhecida cidade de Santa Fé nasceu Lionel Messi, abriu pela primeira vez os olhos um Angel de apelido Di María e foi berço, convém não esquecer, de um “Loco” chamado Marcelo Bielsa.
Rosário é, assim, a mais idolatrada maternidade futebolística do país campeão do Mundo. Sobretudo pelos pais de todas aquelas crianças que sonham vestir a camisola 10. Não existe nenhuma espécie de comparação com Haarlem, por exemplo. A cidade natal de Kokçu tem as suas tulipas e os seus encantos e no entanto está longe de figurar no mapa como uma grande fornecedora de talentos à escala universal.
O ex-Feyenoord, talvez numa tentativa precoce de encontrar o lugar certo, não ignorou a história e decidiu-se pela seleção da Turquia em detrimento da dos Países Baixos, embora isso hoje em dia pareça menos que irrelevante na candidatura a uma fotografia no mural de ídolos que adorna o estádio da Luz.
Nomes como Nicolás Otamendi, Ezequiel Garay, Pablo Aimar, Eduardo Salvio, Nicolás Gaitán e Angel Di María emprestam, esses sim, meia equipa argentina a uma exposição com 20 figuras eleitas pelos sócios para assinalar os 20 anos do recinto encarnado inaugurado em 2003. Pelos motivos óbvios, na referida lista falta um Messi, não falta um Rui Costa, e pelos motivos ainda mais óbvios é difícil imaginar que daqui a duas décadas conste o apelido do médio que no último sábado disparou com toda a força nas críticas ao clube que o colocou no pódio das contratações mais caras de sempre (a terceira, por 25 milhões de euros).
DE TELEGRAAF A GRAVÍSSIMO
Na bombástica entrevista que deu ao “De Telegraaf”, aquele que foi considerado o melhor jogador da última edição da Eredivisie reclamou da falta de importância que lhe deram desde o dia da apresentação, queixou-se do excesso de trabalho na recuperação defensiva, lamentou a falta de enquadramento no plano tático e ainda por cima confessou a sua “raiva” e “deceção” nos vários momentos em que foi substituído.
Sem esconder a profunda desilusão com Roger Schmidt, ao ponto de suplicar pela “posição apropriada” dentro de campo, Kokçu conseguiu no “timing” errado trazer para primeiro plano não só as questões relacionadas com o modelo de jogo e o sistema tático mas principalmente tudo aquilo que tem a ver com a organização interna. O mais grave das palavras reproduzidas no fim de semana não diz respeito, numa primeira instância, à esfera desportiva, remetendo antes para o organograma diretivo.
Roger Schmidt
Mergulhado num total desacerto ou simplesmente desconhecendo o verdadeiro alcance do duríssimo discurso, o internacional turco demitiu-se logo da convocatória para a partida frente ao Casa Pia (vitória das águias em Rio Maior no domingo por magro 1-0) e fez cair a imagem de uma estrutura alicerçada num profissionalismo exemplar.
Num balneário à prova de fogo, nenhum jogador poderia ter a ousadia de dar uma entrevista que escapasse ao controlo da comunicação. O facto de o depoimento ter sido publicado a 24 horas de um desafio que se assemelhava a mais uma final é o segundo aspeto incompreensível. Ter passado pela cabeça do futebolista que a pressão mediática produziria algum efeito positivo só propõe um exercício mental descabido. E equacionar uma saída a todo o custo, forçada pelos acontecimentos, com a grande janela das transferências… fechada, roça o ridículo.
Em conclusão, o próprio Benfica não se limitou a falhar no que diz respeito estritamente ao camisola 10. A instituição começou por falhar de uma forma clamorosa junto de quem representa, aconselha e em certa medida exerce ações vigilantes junto do atleta, pois não se deve presumir que as acusações dadas à estampa pelo jornal neerlandês resultaram em exclusivo da criatividade de quem as proferiu.
RAFA QUE OS PARTA
Face a este contexto, por muito que Rui Costa e os seus pares se sintam traídos pelos ciúmes e lamentos de Orkun Kokçu (parte deles merecedores de amplo acolhimento), a primeira responsabilidade é da cúpula benfiquista e em concreto daqueles que não conseguem manter tudo e todos a remar para o mesmo lado. Interpretar a polémica que rebentou no sábado como um encontro de ténis entre o jovem de 23 anos e Roger Schmidt apenas serviria para ignorar um conjunto de episódios que têm marcado a temporada benfiquista e que não se esgota no debate sobre quem joga onde.
O caso Vlachodimos, a dispensa de Ristic, o desperdício com Jurasek, o empréstimo de Bernat, a vinda de Carreras, o regresso de Guedes a Espanha, a cedência de Schjelderup e a venda de Petar Musa, sem esquecer um Rafa em modo Grimaldo, têm denunciado em 2023/24 a fragilidade de uma estratégia que está longe de ficar circunscrita ao gabinete do técnico germânico.
Para compensar, daqui a uma semana, quando o Benfica entregar os galardões Cosme Damião, pode perfeitamente acontecer a operação de “cosmética” que ajudaria a abafar o Telegraaf enviado dos Países Baixos. Rafa pode subir ao palco para receber o prémio de Jogador Masculino do Ano e nos melhores sonhos de muitos adeptos anunciar a tão ansiada renovação de contrato.
À falta de alternativas pouco comprometidas e pouco compreendidas, o prolongamento do vínculo com o craque nascido em Vila Franca de Xira iria desfazer todas as dúvidas sobre quem continuaria na posição 10 a “partir” todos os defesas que lhe surgissem pela frente.
Claro que Rui Costa, melhor do que ninguém, sabe que Rafa nunca será um segundo Aimar. Seria tudo uma questão de… (Santa) Fé.
Pablo Aimar em abril de 2011 durante o jogo do Benfica para a Liga Europa.
E nesse campo, ninguém tem sequer o direito de convocar Kokçu.
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