Em 1906, o arqueólogo António Santos Rocha publicou, pela primeira vez, um artigo sobre o sítio de São Gens. Denominou-o Necrópole da Moirama. Na altura, ignorava que as mais decinquenta sepulturas rupestres que se dispersam por uma suave vertente sobranceira ao rio Mondego estavam associadas ao povoado das pessoas que ali se fizeram inumar.
Certamente que a população da vizinhança conhecia desde sempre estas sepulturas, escavadas na rocha, e desde há muito que as suas tampas de pedra haviam sido reaproveitadas para outros usos. Terá sido esse conhecimento que motivou a atribuição de um hagiotopónimo a este local, já que não há nenhum vestígio de ter ali existido qualquer antiga igreja ou ermida que pudesse ter estado dedicada a São Gens.
A necrópole agrega 54 sepulturas, que sobreviveram até hoje, mas seria seguramente maior. As sepulturas estão dispersas por uma extensa área e algumas foram escavadas em penedos destacados, mas noutros usaram-se afloramentos ao nível do solo.
Mais de cem anos após essa publicação, realizaram-se as primeiras escavações no antigo povoado medieval. Os trabalhos foram integrados no projecto financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia intitulado “O Alto Mondego: território de fronteira entre Cristãos e Muçulmanos”. A primeira campanha realizou-se em 2008 e outras três sucederam-se nos anos seguintes, apoiadas pelo município de Celorico da Beira, concelho onde se localiza esta única e extraordinária aldeia alto-medieval.
A excepcionalidade do sítio arqueológico deriva em grande parte da originalidade do seu registo, pois não se conhecem outros contextos semelhantes no panorama peninsular. Parte da vida desta comunidade, aqui instalada no século IX, tem vindo a ser recuperada através do estudo dos seus artefactos e dos restos carbonizados resultantes do incêndio que motivou o seu abandono, mais tarde, em finais do século X.
No século IX uma comunidade constituída por quatro a seis núcleos familiares instalou-se junto da foz da ribeira dos Tamanhos, afluente da margem direita do Mondego. Além do acesso a linhas de água permanentes, neste local encontraram também um vale propício para actividades agropastoris, particularmente se compararmos com outros vales do sopé da vertente noroeste da serra da Estrela, mais pequenos e com terrenos menos profundos. Já séculos antes este lugar atraíra outra comunidade, fruto das suas excepcionais condições naturais: sabemos hoje que entre os séculos I e V d.C. estes terrenos integraram uma quinta romana.
O sítio arqueológico medieval é constituído pelo povoado e pela necrópole rupestre que se organiza em torno da chamada “Pedra do Sino”.
A escolha deste sítio por parte da população medieval não se baseou apenas na disponibilidade de água e de terra arável. A quantidade de pedra solta que resultara da desagregação da instalação romana não lhe passou despercebida. Reaproveitada, parte dessa pedra foi essencial para erguer a cerca que rodeou o povoado e trouxe alguma protecção às pessoas e animais que ali viviam.
Com efeito, a cerca de São Gens define uma planta ovalada, com uma única entrada, recolhida e afunilada, que define uma espécie de átrio rodeado de tors graníticos. Alguns destes apresentam ainda hoje entalhes para suporte de estruturas de madeira que facilitariam a circulação entre os vários afloramentos, para controlo do acesso ao interior do povoado. Além da base pétrea, a cerca era encimada por uma paliçada de troncos de madeira, constituída maioritariamente por carvalhos (Quercus sp. e Quercus caducifolia) mas também por freixos (Fraxinus sp.). Apesar do impressionante aspecto e mesmo de uma certa monumentalidade constituída pela estrutura cercada e pela sua entrada, a posição que o povoado ocupava na paisagem tornava-o quase imperceptível, principalmente se o pensarmos numa paisagem mais arborizada do que a actual.
Processo de formação por erosão dos blocos graníticos, de que a Pedra do Sino é um exemplo clássico no glaciarismo da serra da Estrela.
No entanto, uma aldeia era mais do que o seu povoado e habitações. A aldeia de São Gens era constituída por um território cujos limites hoje desconhecemos, mas que integrava a necrópole, que progressivamente se estendeu nas costas do povoado, e espaços de cultivo, de caça e recolecção — e certamente de pesca, no Mondego e na ribeira dos Tamanhos. As escavações permitiram recolher dados que nos falam da vida no interior da cerca, mas sobretudo na complementaridade do território da aldeia e das diversas actividades que ali se desenrolaram.
No interior do povoado, não há muros nem buracos de poste. As habitações apenas puderam ser identificadas pela presença de lareiras de chão. O resto das suas estruturas foi consumido pelo fogo, por serem inteiramente construídas com madeira, colmo e giestas. As choupanas são os paralelos mais próximos das estruturas habitacionais que se encontrariam em São Gens. Seriam estruturas de base circular ou ovalada que assentavam directamente no chão, sem que se recorresse ao uso de postes enterrados. Um exemplar pode ainda hoje ser encontrado nas reservas da Vida Rural do Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa, mas há registos fotográficos muito completos feitos nas décadas de 1940 a 1970 na região, sobretudo entre o Mondego e Viseu, que fazem parte do acervo do museu.
Apesar do grau de destruição, o estudo dos carvões recuperados permitiu reconhecer as madeiras e outras espécies botânicas usadas na construção das habitações. Recorreu-se fundamentalmente aos carvalhos para as partes mais estruturais e a espécies arbustivas e gramíneas para isolamento e cobertura.
Foram recuperados milhares de fragmentos de recipientes de cerâmica, alguns metais, peças de osso e peças de moagem, afiadores e percutores de pedra, assim como vários tipos de escórias de metais. Também foram recolhidos diversos fragmentos de cortiça, restos carbonizados de vários objectos fabricados naquele material, mas cuja forma original não se conservou.
À semelhança de outras da região na mesma época, a comunidade de São Gens era fundamentalmente auto-suficiente. É o registo arqueológico que no-lo diz. Produziam a maioria dos bens que usavam e consumiam. O estudo geoquímico dos barros com que foram produzidas as suas peças cerâmicas mostra uma produção de âmbito local. Teriam sido fabricadas dentro do povoado?
Não se sabe, mas os barros usados são locais. A abundância e a variedade de escórias de ferro indiciam o processamento deste mineral no interior do povoado, mais provavelmente na área da entrada, onde ocorreriam outras actividades manufactureiras. A presença de cossoiros, peças de osso, pedra ou cerâmica usadas no processo de fiação, evidencia igualmente a produção de tecidos (linho e lã, certamente). Esta comunidade produzia provavelmente os seus objectos, construiu as suas casas e comia o que cultivava, criava, recolectava e caçava.
Na época medieval, a caça de animais de pequeno porte (coelhos e lebres, aves…) deveria ser comum em todas as comunidades rurais, mas a caça grossa seria sobretudo uma prorrogativa da nobreza. Em São Gens, porém, estes caçadores conseguiam capturar regularmente animais de grande porte. A presença de todas as porções anatómicas do veado revela que as carcaças completas eram transportadas do local de abate até ao povoado, onde se realizava o desmanche e se processavam as peles.
O registo arqueológico de São Gens veio revelar que as comunidades camponesas também praticavam a caça de animais de maior porte. Na área da entrada do povoado, criaram-se condições excecionais para a conservação de restos ósseos, sobretudo de veado. Do veado aproveitava-se tudo. Além de fornecerem carne, estes animais proporcionariam outras matérias-primas, como a pele, as hastes, os próprios ossos e tendões, que poderiam ser manufacturados. O registo zooarqueológico mostra ainda a presença de javali, corço e coelho.
O aproveitamento de ossos e peles dos animais caçados foi comprovado através da identificação de marcas de desgaste em ossos de veado e de equídeo. Essas marcas indiciam o uso destes ossos como instrumentos de trabalho, nomeadamente na remoção do pêlo e da gordura durante o processo de curtimenta das peles. A localização do sítio junto de dois cursos de água permanente era fundamental, não só como ponto de caça (seriam bebedouros naturais dos animais selvagens), mas também como recurso fundamental para a actividade dos curtumes. O processo de curtimenta das peles requer que estas sejam mergulhadas em água durante vários dias para serem amaciadas e limpas.
A baixa proporção de veados juvenis demonstra ainda que se caçavam maioritariamente os animais adultos, maximizando o tamanho das peles, mas revelando também um conhecimento profundo dos recursos cinegéticos e da sua gestão sustentável. A dominância do veado, conjuntamente com o javali e o corço, espécies que frequentam sobretudo áreas de floresta e matagais de arbustos, revela a exploração quotidiana das áreas de bosque situadas na periferia do povoado, onde deveriam escassear as pastagens adequadas para a manutenção de rebanhos. É este quadro ambiental que poderá explicar o escasso número de animais domésticos, que representam apenas um terço do universo dos ossos identificados.
Entre os animais domésticos encontra-se o gado bovino, ovino e/ou caprino e um porco doméstico, que foram sacrificados em idade adulta, o que mostra que eram criados sobretudo para aproveitamento da força de tracção, da lã e do leite, mais do que da carne.
Outros recursos do bosque eram explorados. Ainda que não se tenha conservado mel, a identificação de potes meleiros atesta a sua recolha e consumo. Alguns frutos silvestres, como amoras, framboesas e castanhas, eram também explorados. As sementes carbonizadas recolhidas evidenciaram também o cultivo de vários cereais, entre os quais se destaca, de forma muito significativa em São Gens, o milho-miúdo. Embora a maior parte dos cereais fosse consumida pelo homem, é possível que a aveia e a cevada fossem cultivadas para alimentar também os animais. Aos cereais certamente juntar-se-iam as leguminosas que, apesar de não terem sido identificadas em São Gens, eventualmente por terem estado guardadas em espaços ainda não escavados, foram identificadas noutros povoados da região. Seria habitual o cultivo e o consumo da fava, da ervilha, da ervilhaca, da lentilha e do chícharo.
Esta diversidade nos cultivos era a chave da sobrevivência em caso de más colheitas de uma espécie. Conciliavam-se cultivos de Inverno e de Primavera, alternando espécies mais exigentes com outras mais adaptadas a condições adversas. Um curiosidade que merece destaque foi a identificação de restos de papoila-dormideira, cultivo pouco conhecido nos registos arqueológicos medievais peninsulares.
Um incêndio no final do século X, cujas circunstâncias não se conhecem, marcou o fim do povoado.
O abandono
O cataclismo que destruiu o povoado ocorreu num dia de final de Verão. Uma framboesa e uma amora carbonizadas permitiram situar a estação do ano, mas não habilitam a estipular com precisão o ano. As datações de radiocarbono obtidas apenas possibilitam situar no fim de um dos verões das últimas décadas do século X. Este incêndio marca o último episódio da história deste sítio de camponeses caçadores.
A razão do abandono do sítio após o incêndio é uma incógnita, mas não deve estar dissociada do contexto histórico dos séculos IX e X, durante os quais o Mondego foi uma terra de fronteira entre a pressão do Norte Asturiano e do Sul Islâmico e onde as populações locais aprenderam a sobreviver e a adaptar-se.
O registo arqueológico fala-nos, pois, de uma comunidade constituída por meia dúzia de famílias que aqui viveu durante cerca de quatro gerações, resilientes e perfeitamente conhecedoras do ambiente que as rodeava.
* Professora Associada de Arqueologia na Universidade Nova de Lisboa (UNL), coordenadora do mestrado em Arqueologia Medieval e directora do Instituto de Estudos Medievais (IEM).
Artigo publicado originalmente na edição nº 15 da revista National Geographic História.
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