SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ao longo da última semana, usando VPN, uma ferramenta que burla restrições de acesso à internet, os chineses assistiram à versão da Netflix para “O Problema dos 3 Corpos”, baseada na obra de ficção científica de Liu Cixin, e não gostou. Expressou sua contrariedade por aplicativos locais de mensagens instantâneas, como o Weixin (WeChat) e Weibo, que agora tem um tópico com cerca de três bilhões de visualizações.
Na Douban, plataforma voltada para críticas de filmes, livros e música, a avaliação ou a nota média dada à série americana ficou em 6,7, contra 8,7 para a versão chinesa, que estreou no ano passado no streaming da Tencent. Em outras palavras, como ecoou numa das hashtags usadas no Weibo, “a China venceu” o confronto entre as duas adaptações, há muito aguardado.
O público diz que a dupla de criadores de “Game of Thrones”, que responde agora por “3 Corpos”, repete o desastre da última temporada da série baseada na obra de George R. R. Martin. O questionamento mais repisado é quanto à conversão étnica e de gênero de alguns dos personagens centrais, sobretudo Wang Miao, cientista que centraliza a trama no livro original e na adaptação chinesa, mas que virou Augustina Salazar, Auggie, na da Netflix.
Mais até, Wang e outros cientistas chineses, distribuídos pelos livros da trilogia de Liu, sem sequer se conhecer, transformaram-se numa equipe, os Cinco de Oxford, que estudaram juntos na universidade inglesa. Na descrição irônica de Hu Xijin, jornalista e hoje personalidade do Weibo, “Yun Tianming é branco, Luo Ji é negro e fuma maconha” e assim por diante.
Além da redistribuição “politicamente correta”, essa reunião de cientistas agora “imberbes” é lamentada nas plataformas chinesas por seguir o clichê ocidental de “Harry Potter” a “Senhor dos Anéis”, concentrando-se num grupo de eleitos para salvar a humanidade, uma “elite”. Com a agravante de que a cientista mantida como chinesa na série, Ye Wenjie, se torna uma “vilã”, com uma contínua fisionomia “odiosa”.
Ye é a jovem desgostosa com a humanidade que deflagra, conscientemente, uma eventual invasão da Terra. No primeiro livro e na versão da Tencent, o momento em que ela se desilude diante da perseguição e morte de seu pai pela Revolução Cultural está no meio da narrativa. Na edição americana do primeiro livro e agora na série da Netflix, a cena é trazida para a introdução.
A mudança foi proposta pelo tradutor americano, há uma década, e aceita por Liu Cixin. Agora, o escritor assinou contrato com a Netflix, concordando com as mudanças ainda mais amplas realizadas pela série. Ele não deu as caras, não participa da divulgação, mas o desagrado do público chinês é tamanho que Liu talvez acabe se pronunciando.
Não que a contrariedade seja unânime. Até alguns dos internautas chineses mais críticos ressalvam que, de um jeito ou de outro, a ficção científica que tanto apreciam segue presente, sobrevive. E o êxito da série americana, a mais vista da Netflix neste momento, é saudado como uma ponte para os espectadores chegarem ao livro e também à série chinesa.
Neste sentido, também ecoou em mídia social, chegando à rede CCTV, a Televisão Central da China, uma intervenção do criador japonês de videogames Hideo Kojima, bastante festejado na China. Admirador antigo de Liu Cixin, ele defendeu a série da Netflix pela “brilhante perspectiva global” e como alternativa “a quem está cansado dos blockbusters de Hollywood”.
Ele fez ressalvas, no entanto. “Eu gostaria muito que vocês lessem o livro original. Para os fãs do livro, eu recomendaria a versão da Tencent”, disse. O material está no YouTube, com legendas em inglês.
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