Depois de uma depressão, Josip Iličić “esperava estar a ver o mar” e não a jogar no Euro com a Eslovénia
A saúde mental (ou a ausência dela) afastou Josip Iličić do futebol em duas ocasiões. O ‘Duque de Bérgamo’, como ficou conhecido na Atalanta, recuperou, voltou à Eslovénia para jogar no Maribor – clube onde Zlatko Zahovic apostou nele no início de carreira – e ganhou o direito de estar no Euro 2024. A expectativa no início da época era estar de férias nesta altura, mas vai marcar presença na estreia dos eslovenos na fase a eliminar da competição contra Portugal (20h, RTP1)
Depois de uma depressão, Josip Iličić “esperava estar a ver o mar” e não a jogar no Euro com a Eslovénia
Bérgamo encenou um ambiente apocalíptico no ano de 2020. Camiões com corpos acabados de fenecer dirigiam-se ao crematório sem capacidade para responder a tanta freguesia. Os obituários ganharam mais espaço nos jornais locais. Só em março desse ano, perderam-se 670 membros de uma comunidade de 120 mil. A cidade foi a raiz da desgraça da pandemia da Europa.
Antes da interrupção das competições desportivas, mas já sem adeptos nas bancadas, a Atalanta, o clube local, foi ao Mestalla eliminar o Valência nos oitavos de final da Liga dos Campeões. Com um pé esquerdo meigo no trato da bola inserido num corpo estranhamente ágil para as proporções que assume, Josip Iličić fez o eco da bola a bater na rede ouvir-se por quatro vezes. A vida colocou-o no topo do mundo - e depois empurrou-o de lá.
Ilicic após marcar quatro golos o Valência. A bola do encontro foi doada ao hospital de Bérgamo
Nessa fase, Iličić “estava entre os candidatos à Bola de Ouro” na visão do treinador para o qual se dedicava a simplificar situações complexas, Gian Piero Gasperini. As listas de infetados pela covid-19 não iam demonstrando ter filtros sociais e recebiam, com o mesmo agrado, um jogador de futebol no topo do mundo ou alguém que nunca viu um jogo na vida. Iličić acabou por contrair o vírus. As comuns tosses e febres afetaram-lhe não só o corpo, mas também a mente.
Quando a cabeça começou a andar aos corrupios, a interesseira depressão aproveitou-se do momento de fragilidade. E alojou-se.
Conviver com esse ‘parasita’ levou-o a afastar-se do futebol. “Fui visitá-lo a uma clínica uma semana antes de jogarmos os quartos de final da Liga dos Campeões. Ele tinha perdido 10/12 quilos. Foi um choque. Eu pegava nele como se fosse uma manequim”, contou o treinador da Atalanta, Gian Piero Gasperini.
Iličić foi autorizado a afastar-se para estar junto da família na Eslovénia e recuperar a melhor condição para regressar aos relvados. Voltou a jogar em junho de 2020, depois de refletir sobre a continuidade da sua carreira. O problema nunca o largou em definitivo. Em janeiro de 2022, o extremo voltou a sofrer de depressão. “As nossas mentes são uma selva”, referiu Gasperini, na altura em que ficou impossibilitado de utilizar o ‘Duque de Bérgamo’ de novo. “Como pessoa, vamos esperar por ele para sempre. Como jogador, não posso dizer o mesmo, porque é imprevisível e delicado”.
Por mútuo acordo, Ilicic rescindiu com a Atalanta no final dessa época depois de cinco anos no clube e 12 em Itália.
Gasperni chegou a referir que Ilicic era candidato a ganhar a Bola de Ouro
A pandemia afetou (e de que maneira) Iličić, dono de um percurso que começou na fuga à Guerra da Jugoslávia. Nascido na Bósnia, refugiou-se na Eslovénia, acabando por representar a seleção do país que o acolheu. Fez esse caminho apenas com a mãe e o irmão, pois o pai morreu devido a doença quando o pequeno ‘Jojo’ tinha apenas sete meses. O sentimento de perda não se ficou por aí. Iličić fazia parte do plantel da Fiorentina quando Davide Astori foi encontrado subitamente morto no estágio do conjunto viola.
O trauma da perda do colega acompanhou-o daí em diante. Em 2018, antes da pandemia e da depressão, um inchaço no pescoço começou a preocupar Iličić. Uma batelada de exames detetou uma infeção bacteriana dos gânglios linfáticos. “Quando fiquei doente, temi que algo semelhante ao que se passou com o Astori pudesse acontecer comigo”, revelou o jogador, mais tarde. “Pensei: ‘E se eu não acordar amanhã?’”.
A Atalanta organizou um momento de despedida ao jogador após a rescisão de contrato por mútuo acordo
O conjunto de traumas e a distância da família progressivamente degradaram a saúde mental de Iličić. Quando se despediu da Atalanta, colegas de equipa e adeptos prestaram-lhe o devido tributo. Regressou à Eslovénia, ao Maribor, com 35 anos e abraçou com saudade a alegria de jogar futebol.
Antes, ‘Jojo’ só tinha representado o clube mais titulado do país durante pouco mais de um mês. Zlatko Zahovic, antigo jogador de Benfica e FC Porto e melhor marcador de sempre da seleção eslovena, era o diretor-desportivo e resgatou Iličić do Interblock Ljubljana, clube acabado de descer de divisão em 2010. Pouco depois de ter sido contratado pelo Maribor, o jogador estava a iniciar a digressão por Itália com Palermo como primeiro destino.
Iličić manteve intacta a relação com a Atalanta. Até os adeptos, sempre defensores do emblema em detrimento dos nomes em permanente mutação nas camisolas, tiveram empatia para com a situação do extremo. A propósito de um jogo da Atalanta contra os austríacos do Sturm Graz, na Liga Europa, um grupo de tiffosi fez escala na Eslovénia para brindarem o seu ex-jogador com apoio.
Aos 36 anos e depois de uma carreira com altos e baixos, Ilicic estreou-se numa grande competição de seleções
A estabilidade proporcionou uma oportunidade que parecia perdida.
Dois anos, sete meses e 26 dias depois, Iličić voltou a jogar pela seleção eslovena. No dia do regresso, marcou o golo que deu a vitória à Eslovénia no jogo de preparação para o Euro 2024, contra a Arménia. A convocatória do selecionador Matjaz Kek, nessa fase, a 10 dias do arranque da grande competição, ainda não estava fechada. Alguns nomes tinham que ser cortados para o técnico reduzir o plantel aos 26 jogadores permitidos pela UEFA.
Graças a esse momento, ou não, Iličić manteve-se na lista final e já fez a estreia numa grande competição. Frente à Inglaterra, jogou os últimos 15 minutos do encontro que apurou a Eslovénia pela primeira vez para a fase a eliminar e confessou ter recebido palavras de admiração de Declan Rice. Pouco antes da pandemia, na forma em que estava, Iličić seria o dínamo de tudo na sua seleção, ele e mais 10.
Tantos anos volvidos, nesta altura “esperava estar a ver o mar”, admitiu Iličić perante a surpresa de ter sido convocado. Hoje ele veste o número 26 na camisola, representa o último a juntar-se ao grupo da seleção que se qualificou para o Euro 2024 sem ele a ajudar durante a fase de apuramento. “Podemos perder muito na vida, mas a vida também nos pode dar muito”, disse o jogador.