Um vislumbre do passado judaico em Huqoq, na Galileia

Quando a arqueóloga Jodi Magness subiu uma colina soalheira, com vista sobre o mar da Galileia, no Verão de 2010, não sabia ao certo o que poderia encontrar. Existira uma antiga aldeia judaica conhecida como Huqoq neste local do Nordeste de Israel, mas tudo o que restava acima do solo era uma amálgama de pedras de edifícios antigos, detritos modernos e plantas de mostarda selvagem.

Docente de Judaísmo Primitivo na Universidade da Carolina do Norte e exploradora da National Geographic, Jodi passara anos a liderar escavações em Israel e suspeitava que o topo desta colina merecia ser explorado. No Verão seguinte, ela e a sua equipa descobriram uma parede de pedra, com orientação norte-sul, cerca de dois metros abaixo do nível do solo. Várias evidências, incluindo uma porta virada para Jerusalém, revelaram o perímetro de uma sinagoga construída há cerca de 1.600 anos, no início do século V.

Em edifícios semelhantes da mesma época tinham sido encontrados pisos pavimentados. No entanto, à medida que continuava a escavar, a equipa encontrou tesselas de mosaico, indícios de que algo verdadeiramente especial poderia existir sob os seus pés.

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Christian de Brer, o conservador do sítio, remove cuidadosamente terra, sais e argamassa da juba de um leão. É provável que o artista que criou este painel nunca tivesse visto tal criatura, limitando-se a reproduzir um popular padrão decorativo.

Num dia de Junho de 2012, Bryan Bozung, da Universidade Brigham Young, estava a remover terra da sua quadrícula de escavação quando raspou em algo duro. Avisou Jodi Magness e, enquanto ela limpava a terra, ambos ficaram espantados ao verem o rosto de uma mulher, delicadamente desenhado com tesselas, olhando para eles. Era a primeira secção do mosaico que viria a ser exposto.

Ao longo da década seguinte, Jodi Magness regressou a Huqoq todos os meses de Junho com uma equipa internacional de especialistas e estudantes voluntários. De início, planeava passar apenas cinco temporadas a escavar parte do sítio, mas rapidamente se apercebeu de que iria passar ali muito mais tempo. Os objectivos do projecto teriam agora de incluir a preservação do que restava do pavimento em mosaico e escavar lentamente tudo o que existisse. As campanhas viriam a revelar algo extraordinário.

Depois de totalmente exposto, o perímetro da sinagoga tinha cerca de 20 metros de comprimento por 15 de largura. Todo o pavimento estava coberto por painéis de mosaico requintadamente elaborados, embora apenas cerca de metade do pavimento original permanecesse intacto.

“Por norma, numa igreja ou sinagoga normal, temos uma, duas ou três cenas, mas aqui há muitas mais”, explica Gideon Avni, director de arqueologia da Autoridade de Antiguidades de Israel, que autorizou a escavação. “É provavelmente a melhor e mais diversificada concentração de mosaicos do país.”

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A estudante e voluntária Anna Lafleur limpa uma parede recentemente exposta. Vive no Canadá, mas nasceu na Galileia. “Quando a oportunidade de escavar surgiu, eu soube que queria participar”, diz.

Muitos dos mosaicos sobreviventes relatam histórias da Bíblia hebraica: camelos, burros, elefantes e leões dirigem-se para a arca de Noé; o mar Vermelho engole o exército egípcio; carpinteiros e pedreiros constroem a Torre de Babel; Sansão carrega o portão de Gaza sobre os ombros. “Há muita violência nestes mosaicos, muito sangue”, resume Jodi Magness. “Mas também há algum humor.”

Entre as cenas mais macabras encontra-se uma cena do Livro dos Juízes em que uma mulher queneia chamada Jael, de martelo na mão, espeta uma estaca na cabeça do general cananeu Sisera. Em contraste, um fragmento da história de Jonas mostra o desafortunado profeta engolido por três peixes sucessivamente maiores.

Os mosaicos também se inspiraram em motivos de arte clássica, incluindo cupidos, máscaras de teatro e o deus grego do Sol, Hélio, montado na sua biga rodeado pelos símbolos do zodíaco.

Huqoq poderia ser uma aldeia na zona rural, mas não se encontrava isolada, acrescenta Dennis Mizzi, director adjunto da escavação e professor de Hebraico e Judaísmo Antigo na Universidade de Malta. “Estava ligada ao mundo mediterrâneo. Isto significa que a comunidade tinha noção de uma rede mais ampla de tradições e se sentia suficientemente à vontade com ideias vindas de fora da sua própria zona.”

Embora ainda subsistam dúvidas sobre a origem da sinagoga, esta descoberta está a reescrever a história e o conhecimento do modo como os judeus viveram sob domínio estrangeiro. Os romanos conquistaram o território a leste do Mediterrâneo, incluindo a Galileia, no século I a.C. A princípio, reconheceram o judaísmo como religião ancestral. O povo judeu pôde continuar a viver segundo as suas próprias leis e foram concedidos direitos de excepção, como a dispensa do culto do imperador.

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Fritz Clingroth (à direita), da Faculdade de Wooster, no Ohio, e a conservadora Linda Roundhill estudam um mosaico que retrata uma lebre e um animal que poderá ser uma raposa a debicar uvas. A cena, provavelmente, simbolizava a abundância.

“Nada disso muda significativamente até o cristianismo se tornar uma religião legal no Império Romano e, mais tarde, a religião oficial do império”, diz Jodi Magness. “Quando isso acontece, no século IV, a legislação começa a restringir cada vez mais o judaísmo.”

Por vezes, as novas leis proibiam a construção de sinagogas. “Se encararmos o contexto unicamente a partir dessa perspectiva, podemos pensar que os judeus eram perseguidos e oprimidos”, diz a especialista.

No entanto, a existência de uma grande sinagoga decorada com expressões artísticas ousadas em Huqoq é uma prova clara de que, apesar das tensões, a vida quotidiana na Galileia talvez não fosse tão sombria.

De todos os mosaicos, há um painel particularmente intrigante. Elaborado com maior cuidado do que o resto do pavimento, com grandes secções ainda intactas, está dividido em três registos horizontais. Em baixo, soldados derrotados, um elefante de batalha e um touro estão a morrer devido a feridas sangrentas provocadas por lanças. Ao centro, arcos de pedra abrigam homens vestidos com túnicas. E, no topo, dois líderes conversam: um envergando uma túnica e o outro uma armadura, ambos acompanhados pelos seus seguidores. Jodi Magness sugere que o homem de armadura é Alexandre, o Grande. Os seus seguidores são soldados com elefantes de batalha. Ele usa o diadema e o manto roxo de um rei, mas nenhuma inscrição o identifica.

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Entre os mosaicos descobertos no chão de uma sinagoga do século V na Galileia, em Israel, inclui-se o rosto de uma mulher e uma consagração em hebraico. A cena ao lado parece mostrar o sumo sacerdote de Jerusalém em conversa com Alexandre, o Grande.

“Existiu apenas um rei grego na Antiguidade tão importante que não precisava de legenda”, diz. Se assim for, este mosaico poderá representar um encontro entre o sumo sacerdote de Jerusalém e Alexandre durante as famosas batalhas do conquistador contra os persas no século IV a.C. A história – provavelmente uma lenda e não um facto – circulou nas comunidades judaicas durante séculos.

“O objectivo da lenda era mostrar que até Alexandre, o maior dos reis gregos, reconhecia a grandeza do deus de Israel”, sugere Jodi Magness. Esta obra-prima, juntamente com o resto dos painéis do mosaico, foi provavelmente criada por especialistas de uma oficina local e de natureza familiar. Uma inscrição existente junto da porta principal contém vários nomes de artesãos, possivelmente os mesmos que criaram o pavimento.

“Parecem ser irmãos de uma só família e talvez mais algumas pessoas”, diz Ra’anan Boustan, historiador de Judaísmo da Universidade de Princeton. Um artista mais graduado teria elaborado o desenho e delineado as figuras de cada painel.

Os artesãos mais experientes na arte do mosaico dedicavam-se a pormenores como rostos, mãos e pés, enquanto os mais novos preenchiam planos de fundo e as áreas de cor de maiores dimensões. Trabalhavam com materiais da região, cortados em tiras compridas no local e depois partidos em cubos minúsculos. A qualidade de um mosaico depende do tamanho das tesselas. Quanto mais pequenas forem, mais pormenores criam. Especialistas em mosaicos medem o número de tesselas por decímetro quadrado. Em alguns sítios de Huqoq, a contagem é tão baixa como 175; noutros, é cerca de 230. Mas o misterioso mosaico com três níveis tem cerca de quinhentas. “As leituras de densidade dessa área aproximam-se daquilo que poderíamos encontrar em Constantinopla, em mosaicos imperiais”, diz Karen Britt, especialista em mosaicos da Universidade Estadual do Noroeste do Missouri.

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Segundo o Livro do Génesis, a Torre de Babel foi construída para chegar aos céus. A sinagoga de Huqoq mostra a sua construção e uma equipa diversificada de operários em acção. Deus castigou este acto de arrogância da humanidade e baralhou a sua língua. A discórdia resultante é evidente numa luta entre dois operários (ao centro, à esquerda).

No entanto, essa nem é a característica mais espectacular do edifício. A avaliar pelos fragmentos de estuque colorido que foram recuperados, partes do interior poderiam estar pintadas com cores vivas, inspirando os membros da escavação a apelidarem-na de “sinagoga-discoteca”. Jodi Magness diz até que é a sinagoga mais kitsch de sempre. Partes do interior do edifício encontravam-se provavelmente pintadas de vermelho, branco, cor-de-rosa e amarelo – decoração que poderá ter-se alargado ao exterior.

Ao longo da escavação, a equipa foi revelando os mosaicos em secções, expondo diferentes áreas catalogadas e fotografadas antes de serem de novo cobertas, de modo a ficarem preservadas in situ. Tendo estudado e analisado outros achados na região, Jodi Magness está convencida de que o desenho extravagante de Huqoq poderá evidenciar uma certa concorrência interjudaica. “Todas as aldeias da região estavam a construir sinagogas e são todas espectaculares”, diz. “Mas aqui as pessoas decidiram construir a mãe de todas as sinagogas.” Provavelmente com dois pisos de altura e implantada numa zona alta da aldeia, seria visível a grande distância.

Uma estrutura tão luxuosa não pode ter sido barata. Talvez fosse financiada por patronos ricos, mas é mais provável que os aldeãos com menos meios ganhassem dinheiro suficiente para doar algum para um fundo de construção. Pelo menos no século V, os judeus desta região isolada pareciam prosperar. No entanto, talvez se preocupassem com o futuro da sua liberdade religiosa. E parecem ter expressado essas preocupações no pavimento da sua sinagoga.

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A luz da alvorada já encontra os arqueólogos prontos a trabalhar sob as tendas que fornecem sombra à escavação. “Estamos na terra do leite e do mel”, diz Jodi Magness, directora da escavação, descrevendo as colinas em redor, onde pomares, gado e colmeias prosperam.

“Acho que eles se debatiam com a realidade de viverem num mundo em rápida cristianização”, diz Karen Britt, a especialista em mosaicos. “Uma das maneiras de enfrentarem a situação era recordar que o seu contexto não era assim tão diferente de outras alturas no passado em que os israelitas tiveram de lidar com poderes estrangeiros, fossem eles filisteus, cananeus, babilónicos, gregos, romanos e agora os romanos cristãos.”

Ra’anan Boustan, o historiador do judaísmo, concorda, acrescentando que “o tema da salvação de Deus através de guerreiros humanos enfrentando o domínio estrangeiro é algo que é transmitido com muita força”.

E, no entanto, algumas gerações após a sua construção, a sinagoga foi misteriosamente abandonada. Tendo em conta a longa história de actividade sísmica catastrófica da região, não é difícil imaginar um terramoto que tenha deixado a sinagoga tão danificada que foi considerada pouco segura, mesmo tendo permanecido de pé. Por fim, partes do edifício desabaram, destruindo secções dos mosaicos. Outro tremor de terra poderá ter desferido o golpe final. “Não foi incendiada. Não foi desmantelada”, diz Martin Wells, especialista em arquitectura da Faculdade de Austin no Texas. “O meu palpite é um terramoto.”

Independentemente do sucedido, cerca de oitocentos anos após a construção da sinagoga, a região ficou sujeita ao controlo dos mamelucos, uma dinastia muçulmana radicada no Egipto. Uma estrada mameluca, integrada numa rede rodoviária que ligava o Cairo a Damasco, atravessava a aldeia, trazendo ali um fluxo de mercadores e peregrinos. Quando a zona se tornou de novo próspera, é provável que os judeus que ali permaneceram tivessem reparado a sinagoga do século V, ampliando-a e acrescentando-lhe um pavimento grosso, num material semelhante a betão que, por felicidade, protegeu os mosaicos.

A partir do século XV, o tráfego comercial abrandou na região. A sinagoga parece ter sido de novo abandonada e foi ruindo gradualmente. E assim permaneceu até à chegada dos arqueólogos. Doze anos após terem começado a escavar, Jodi Magness e a sua equipa terminaram o trabalho de campo no Verão de 2023. O sítio permanece coberto para proteger os mosaicos e foi entregue à Autoridade de Antiguidades de Israel e ao Fundo Nacional Judaico, que desenvolverão planos orientados para o turismo. Gideon Avni, o arqueólogo da AAI, prevê que esta “jóia da coroa” do património cultural de Israel venha a ser uma das maiores atracções locais.

A escavação poderá ter terminado, mas ainda há muito material escavado para analisar e muitos mistérios por resolver, diz Jodi Magness. “Eu e a minha equipa voltaremos cá durante anos.”

Artigo publicado originalmente na edição de Maio de 2024 da revista National Geographic.

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