Esta crónica não será lida na Rússia
O escrutínio e a verdade sempre incomodaram quem tem coisas a esconder, e o Kremlin tem as mãos sujas de factos por reportar
Esta crónica não será lida na Rússia
Quatro órgãos de comunicação social portugueses, incluindo o Expresso, foram esta semana presenteados com a notícia de que se encontram banidos na Rússia; um “prémio” louvável para quem exerce esta nobre profissão num Estado de direito. Uma imprensa plural sempre foi e continuará a ser uma das prioridades basilares de qualquer forma de governo democrático, onde deve ser fomentada a autonomia, independência e, acima de tudo, a liberdade para questionar. Ora, o escrutínio e a verdade sempre incomodaram quem tem coisas a esconder, e o Kremlin tem as mãos sujas de factos por reportar.
Nos países onde existem impedimentos à busca pela verdade e à reportagem dos factos, quer seja na Europa ou fora das nossas fronteiras, normalmente existem forças políticas a capitalizar essa opacidade e esse silêncio. Na Rússia, de acordo com o ranking do projeto “Repórteres Sem Fronteiras", quase todos os meios de comunicação social independentes foram proibidos, bloqueados e/ou declarados "agentes estrangeiros" desde a invasão russa da Ucrânia, em 2022, sendo que os restantes estão sujeitos a censura militar patrocinada pelo aparelho político. Para surpresa de absolutamente nenhum democrata convicto, em 2024, a Rússia está no fosso do ranking mundial da liberdade de imprensa (162 em 180 países).
Talvez o facto mais inquietante nesta conversa seja o de que a dimensão política da liberdade de imprensa, que é complementar às dimensões sociocultural, securitária, económica e legislativa, seja aquela que mais se tem deteriorado nos últimos anos. Por outras palavras, são os políticos, os governos e os partidos quem mais representa uma crescente ameaça ao jornalismo, equiparável a outros perigos, tais como a insegurança interna. Se o papel dos Estados enquanto garantes da liberdade de imprensa não está a ser cumprido, verifica-se ainda um aumento preocupante da pressão, coerção, desrespeito, desresponsabilização e hostilidade política para prejudicar proativamente o jornalismo livre, o que culmina na instrumentalização dos meios de comunicação social para campanhas de assédio, desinformação e incitamento ao ódio. Em democracia, esta tendência tem tudo para nos levar direitinhos a uma ditadura.
Torna-se então evidente que nunca foi tão necessário repensar a proteção deste exercício em pleno direito e em plena segurança, e que carece de mecanismos legislativos eficazes a nível internacional e multilateral. Aprovada em 2015, a Resolução 2222 do Conselho de Segurança das Nações Unidas refere, por exemplo, a necessidade de proteção dos jornalistas em contexto de conflito armado, o que em pouco ou nada permitiu prevenir a morte de mais de 100 jornalistas na guerra Israel-Gaza.
Também em períodos de paz os jornalistas não estão livres de ataque, e as mulheres são vítimas que se destacam: correspondem a menos de 15% das detenções mundiais, mas representam mais de 50% das sentenças longas proferidas no último ano, de acordo com o mesmo relatório. Chegam-nos histórias de homicídio, assédio e violência contra mulheres jornalistas desde o Bangladesh e Irão até aos EUA e Canadá.
Engane-se quem crê que as ameaças contra a comunicação social surgem apenas lá fora nos países menos democráticos. Dentro das democracias ocidentais, as autoproclamadas líderes da robustez das instituições e do progresso, os jornalistas também vão sendo silenciados um a um. Com a extrema polarização do debate público e do exercício político, destacam-se desde logo o primeiro-ministro pró-Kremlin da Hungria, Viktor Orban, e o homólogo da Eslováquia, Robert Fico, bem como os partidos no poder na Hungria (67), em Malta (73) e na Grécia (88), os três países da UE com pior classificação no ranking da liberdade de imprensa. Os EUA (55), França (21) e o Reino Unido (23) também estão sob vigilância, graças à detenção da jornalista Ariana Lavrilleux pelas autoridades francesas e à detenção de Julian Assange, libertado precisamente aquando da escrita deste parágrafo. Aguardemos para ver em que novos países esta crónica também não será lida nos próximos anos.