Morreu César Luis Menotti, o treinador campeão mundial pela Argentina em 1978, que tratava o futebol como uma obra de arte
O homem para quem o futebol só valia a pena se fosse atacante, romântico, uma arte, deixou a terra aos 85 anos. Há dez dias que o primeiro treinador campeão mundial pela Argentina estava internado com uma anemia severa
Cesar Luis Menotti
Chamavam-lhe “Flaco” por ser alto, magro, pouco gracioso nos movimentos, mas como assim chamar “Flaco” a quem, com o seu futebol de ataque, romântico até, com a graciosidade que tinha, isso sim, nas palavras, ajudou a revolucionar o futebol? César Luis Menotti morreu este domingo, em Buenos Aires, aos 85 anos.
O treinador que deu à Argentina o seu primeiro título mundial, em 1978, com Mario Kempes mas sem Maradona, que deixou de fora desse Mundial (decisão que lhe terá pesado para o resto da vida) partir depois de dez dias internado, com um quadro severo de anemia. A ele talvez devamos uma versão idealizada do futebol, ele que o tratava com a mesma deferência com que se trata escritores ou músicos, que Menotti frequentemente citava para falar do jogo bonito.
Com ele, o futebol era um jogo de ataque, uma orquestra de beleza em campo. A bola era sempre bem tratada. “Quando alguém fala com Menotti aprende sempre de futebol”, disse à Tribuna Expresso Ángel Cappa, antigo treinador argentino que ajudou Menotti no Mundial de 1982, este já de triste memória para a memória albiceleste e que terá contribuído também para os críticos cavalgarem na ideia de que o mago era, talvez, demasiado retórico e lírico para as exigências do futebol moderno.
Curioso ou não, é com Menotti no cargo de diretor nacional de seleções da Associação de Futebol Argentino, cargo que assumiu em 2019, que a Argentina voltou a ser campeã mundial, em 2022, ainda que tenha assumido que a decisão de contratar Lionel Scaloni não foi sua.
Maradona e Menotti num treino
Antes de se sentar nos bancos, Menotti foi um atacante que chegou relativamente tarde ao futebol. Nascido em Rosário, como Lionel Messi ou Marcelo Bielsa, em 1938, só jogou profissionalmente a partir dos 22 anos, no Rosario Central, antes de passar pelo Racing e depois pelo Boca Juniors. Como era como jogador? Nada como o próprio se definir: “Se me dás a oportunidade de escolher – é um bocado vaidoso – mas era como Riquelme: bom disparo de longe, com muito passe para golo. Era hábil, fazia túneis e dava forte na pelota”, avaliou em tempos à revista “El Gráfico”.
Ainda passou pelo futebol norte-americano e acabou a carreira no Brasil, jogando ao lado de Pelé no Santos – que dizia ser o melhor de sempre, melhor do que qualquer compatriota. Em São Paulo ganhou o campeonato brasileiro, terminando a carreira no Juventus da Mooca. Jogou pouco na seleção, apenas sete jogos, mas a história de azul e branco seria escrita de outra forma.
Fumador inveterado (o cigarro no canto da boca era uma imagem de marca), Menotti tinha apenas 35 anos quando chegou à seleção principal da Argentina, em 1974, depois de se sagrar campeão argentino com o Huracán, onde o futebol poético, de ataque, já era uma realidade. Numa federação argentina ainda pouco habituada a um ambiente profissional, Menotti impôs desde logo ideias a longo prazo. O futebol encantava e as palavras do treinador também.
A vitória no Mundial de 1978 não chegou sem algum amargo de boca. Menotti era um homem de esquerda, filiado no Partido Comunista, numa altura em que a Argentina vivia sob o jugo de uma ditadura militar terrível. Foi acusado de não ser crítico o suficiente do regime, mas ainda antes da queda da ditadura foi uma das figuras do país que exigiu que se conhecessem os nomes dos desaparecidos dos anos horríveis do regime de Videla.
Em 1979, agora já com Maradona, foi campeão mundial de sub-20, no Japão. “Aprender a jogar futebol realmente, aprendi com Menotti: ensinou-me a manejar os espaços, a manejar os tempos, a servir-me do engano, a saber fazer os avançados caírem na armadilha e perceber que há ações na linha de fundo que servem para depois criarem mais à frente Maradona, Ramón Díaz ou Calderón, que eram jogadores brilhantes que jogavam nessa equipa”, explicouRúben Rossi, um dos jogadores dessa seleção, numa entrevista à Tribuna Expresso em 2019.
Rossi dizia nessa entrevista que Menotti era “absolutamente inteligente, muito inteligente. Com uma convicção, princípios e ideais em que, fundamentalmente, a sua filosofia de vida se vê refletida no campo de jogo”.
“Recordo uma frase que diz assim: ‘Conhece-se mais uma pessoa numa hora de jogo do que num ano de conversação’ – Platão disse isso. E, nessa hora de jogo, uma pessoa é como é na vida e na vida Menotti é uma pessoa sem trampa [truques/armadilhas], que gosta de conseguir as coisas da forma que lhe corresponde, e o mesmo que ele apregoa no mundo de futebol: jogar para ganhar, que não é o mesmo de tratar de ganhar de qualquer maneira”, sublinhou ainda.
O sucesso conseguido em 1978 e 1979 não seria replicado no Mundial de 1982 e Menotti deixou a seleção nacional argentina. Seguiram-se passagens por Barcelona (onde reencontrou Maradona), Boca Juniors ou Atlético Madrid, pela seleção do México e por uma miríade de clubes argentinos e mexicanos. Nunca com o mesmo sucesso. Mas para a história fica o homem que tratava o futebol como quem trata a arte.
“Para mim há dois treinadores que são fundamentais, que trouxeram coisas importantes para melhorar o futebol: Rinus Michels, a partir da tática, e Menotti, pelos conceitos. Os conceitos permitem-te entender. Rinus Michels fez com que as equipas fossem curtas, reduzindo os espaços e os tempos. Obrigou a pensar de outra maneira. Menotti ajudou-nos a entender o jogo, a meter-nos no interior do jogo e a compreendê-lo melhor”, sublinhava também Ángel Cappa à Tribuna Expresso em 2018. O que não é dizer pouco.