De sonso a desavergonhado
Já lá vai o tempo em que a China disfarçava as ambições e passava apenas por um grande sucesso da globalização. Pequim agora diz ao que vem. E vem para mudar o mundo
De sonso a desavergonhado
Pernas de rã, torta de pintada, ravióli de lagostim, pregado com trufas negras, lagosta, cordeiro, bom vinho e champanhe. À volta da mesa, além de Xi Jinping, o convidado de honra, e Emanuel Macron, o anfitrião, estavam vários comensais. Dois deles resumem parte do dilema europeu com a China.
No jantar de segunda-feira, no Palácio do Eliseu, estavam Carlos Tavares, o CEO da Stellantis, proprietária das francesas Citroen e Peugeot, e Bernard Arnault, o homem mais rico do mundo e CEO da LVMH, a maior empresa de luxo, que inclui as marcas Louis Vuitton, Dior, Moët & Chandon, Veuve Clicquot, Dom Pérignon e Maison Ruinart.
Dito de outra maneira, estava o representante das marcas automóveis francesas mais prejudicadas pelo sucesso dos veículos elétricos chineses baratos e um produtor de cognac, a principal vítima da retaliação chinesa às investigações da União Europeia aos subsídios aos carros elétricos feitos na China,
O conflito entre os interesses da LVMH e da Stellantis ilustram parte do drama da Europa na sua relação com a China. Quer exportar, não quer que as importações destruam as empresas europeias, mas os produtos chineses estão cada vez melhores e continuam mais baratos. Tudo isto podia ser só um problema económico, mas não é.
Depois de jantar de França, Xi Jinping escolheu ir à Sérvia e à Hungria. A visita a Belgrado coincide com o 25.º aniversário do bombardeamento (por engano, continuam a explicar os americanos, e por causa das dúvidas, com pedidos de desculpa e indemnizações) da embaixada chinesa na capital sérvia, quando a NATO defendia os kosovares dos sérvios. O propósito da visita é óbvio. Dizer que a NATO não é tão pacífica quanto isso (essa intervenção é, precisamente, usada por muitos dos apoiantes de Moscovo para mostrar que americanos e europeus atacam países quando lhes é útil). E, talvez mais importante, manter uma relação forte com o país mais problemático de um futuro eventual grande alargamento. Quando e se os países dos Balcãs que faltam entrarem na UE, a Europa terá de decidir se quer a Sérvia, uma aliada de Moscovo e Pequim, de fora, mantendo um foco de instabilidade no meio da região, ou deixar entrar um país que será um problema. Seja como for, a China estará por perto. E por dentro. Seguiu-se Budapeste.
O que têm Trump, Putin e Jinping em comum? Órban. É amigo dos três. E prefere-os aos democratas liberais do Ocidente. É por isso que Xi Jinping o visita também. Para mostrar quem são os seus amigos na Europa. E os apoiar quando desestabilizam o Continente e a União europeia.
Sobre a invasão russa da Ucrânia, Xi disse que lamenta mas não pode fazer nada. E promete não vender o que tem vendido e já tinha prometido não vender a Moscovo: material que tem uso militar. Depois, daqui a uns dias, receberá em Pequim o seu melhor amigo sem limites, Vladimir Putin.
Há uns anos, no tempo de Trump, em Davos, Xi Jinping apresentou-se como o último dos globalistas. Crente na paz e prosperidade pelo comércio. Agora, já nem finge.
A China tem interesse e acredita que tem a oportunidade de reordenar o mundo e a ordem em que temos vivido. Foi isso que a escolha de destinos na Europa mostrou. Sem demasiados sorrisos em França, com abracinhos para Belgrado e Budapeste.