O que me faz comichão é o branqueamento de fascistas
Se nada mais se pedisse, que houvesse respeito, como o que exemplarmente demonstrou o Presidente da Assembleia da República pelas últimas quatro vítimas da PIDE. Respeito pelos que perderam a vida por nós todos, pelas suas famílias que ainda cá estão
O que me faz comichão é o branqueamento de fascistas
Joaquim Lopes Martins, morto aos 22 anos. Augusto Almeida Martins, morto aos 23 anos. António Soares, morto aos 39 anos. António Tavares, morto aos 29 anos. Francisca Colaço, morta aos 29 anos. Joaquim Correia, morto aos 30 anos. Francisco Marquês, morto aos 30 anos. Mortos por espancamento, mortos sem assistência médica, mortos por consequência da tortura. Mortos pela PIDE. Assassinados pelo fascismo.
Apenas uma amostra residualíssima de todos os que perderam a vida para que hoje possamos viver em liberdade. Vidas interrompidas pelas mãos de quem cobardemente obedecia, reprimindo, espancando, queimando, privando do sono. Mortos pela PIDE, vítimas do fascismo e da ditadura. À sua vida devemos as nossas vidas em liberdade. Às suas lutas devemos a liberdade conquistada. Aos agentes da PIDE só devemos o nosso compromisso coletivo em afirmar, sobretudo aos que não têm memória do passado, que nada justifica a sua ação, que nada explica a violência, que nada contempla a repressão. Foram assassinos. E é como assassinos, que ceifaram palavras, pensamentos, lutas e vidas, que serão sempre lembrados. Atacaram a humanidade de cada um dos que prenderam e torturaram, desistindo da sua própria humanidade.
Os 50 anos de Abril convocam-nos para um novo desafio. Quem hoje está nas escolas e nas universidades nasceu e viveu em liberdade. A maior parte dos seus pais e familiares próximos nasceu, cresceu e viveu sempre em liberdade. O desafio de manter a memória de um país onde não se podia ser, pensar ou falar torna-se urgente. Para que não vinguem os discursos dos que proclamam que antigamente é que era bom, que adulteram dados e truncam informação. Para que cada criança e jovem saiba que tudo o que foi conquistado não é um adquirido. Para que não se confunda o que ainda está por fazer e cumprir com um alegado falhanço do projeto democrático. Fazer memória do que foi, repetindo o testemunho de quem viveu e, sobretudo, de quem sofreu.
O Correio da Manhã entendeu entrevistar o inspetor da PIDE, Óscar Cardoso. Aquele mesmo a quem Cavaco Silva atribuiu a pensão vitalícia que recusou a Salgueiro Maia (e este é sempre o Cavaco Silva de que me recordarei e de que falarei a filhos, sobrinhos e netos). Um inspetor da PIDE é, para mim, sempre alguém, e não me poupo na adjetivação, asqueroso, pelo asco que me causa a sua desumanidade, a sua violência e cobardia. Dá-se-lhe a palavra para que ele possa dizer que a tortura com choques elétricos só fazia comichão? Que nojo que isto me causa! Não lhe pesa a consciência, nem por um dia, saber que é responsável por centenas de mortes, por centenas de traumas para a vida, apenas porque havia quem ousasse querer a liberdade para todos?
Não consigo ter respeito pela opção editorial de quem entendeu que esta entrevista era interessante e, ainda menos, pelos destaques dados. No momento em que é preciso preservar a memória do quanto foi preciso lutar para termos democracia, o que me faz comichão é que se branqueiem fascistas, que se tente mostrar uma qualquer humanidade, que se publique sem contraditório a sua versão suavizada da tortura inominável. Este é um exercício de instalação de uma verdade alternativa ao que, de facto, aconteceu. De suavização do terror, de aligeiramento da repressão. E, por isso, não posso considerar aceitável. Ouçamos antes todas as Auroras Rodrigues de Portugal.
Claro que Óscar Cardoso vota Chega. Claro que os fascistas, ou seus próximos, que têm saído debaixo das pedras nas últimas semanas, com ataques à diversidade, com ofensas ao estatuto da mulher, com congressos sobre a conversão de homossexuais, se estão todos a sentir legitimados pelo discurso do Chega e pela torrente de disparates e mentiras que os seus militantes e apoiantes produzem diariamente nos vários esgotos das redes sociais. Claro que Óscar Cardoso vota no André Ventura que gritou contra o regime nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril.
Se nada mais se pedisse, que houvesse respeito, como o que exemplarmente demonstrou o Presidente da Assembleia da República pelas últimas quatro vítimas da PIDE. Respeito pelos que perderam a vida por nós todos, pelas suas famílias que ainda cá estão.
Em Portugal, como estudou Irene Pimentel, os processos judiciais contra agentes da PIDE traduziram-se, na sua vasta maioria, em penas brandas, benévolas, com atenuantes e perdões. Diz Irene Pimentel, em artigo no Público que “embora haja uma sensação de impunidade, já passou, salvo melhor opinião, o tempo de exigir qualquer “Accountability” em tribunal ou mecanismos de procura de verdade”. Talvez tenha passado esse tempo. Mas não passou o tempo de dizer que os democratas não querem o branqueamento ou a perspetiva alternativa dos que cometeram crimes contra o humanismo e a liberdade.
A Iniciativa Liberal ir para a Avenida da Liberdade gritar “25 de abril sempre. Comunismo nunca mais” não é um comportamento assim tão distante do branqueamento de Óscar Cardoso. Esta chalaça da Iniciativa Liberal ignora que, se hoje pode estar a descer a Avenida da Liberdade nesta festa maior que vivemos, pode agradecer a muitos comunistas que sofreram o que nenhum liberal sonha (e presumo que se dispusesse a fazer por um coletivo) e que perderam a vida às mãos dos que hoje tentam dizer que não foi bem assim. Agradeça, pois, a Iniciativa Liberal ao legado que o PCP lhe deixou, honrando a sua história e a liberdade de todos nós.