14 vírus que mudaram a história da humanidade

O toque real era um vão procedimento de imposição de mãos praticado pelos reis franceses e ingleses durante a Idade Média e o Renascimento. O seu objectivo era curar as doenças fatídicas dos súbditos. Embora fosse particularmente utilizado contra a tuberculose, durante algum tempo, a prática estendeu-se a outro tipo de doenças, tanto de origem bacteriana como viral.

Durante o reinado de Isabel I o costume voltou a ser restringido ao âmbito da escrófula, um processo infeccioso que afecta os gânglios linfáticos.

Isabel I foi uma rainha audaz, forte, poderosa e a última monarca da dinastia Tudor a governar Inglaterra e a Irlanda. Tanto o seu aspecto físico como os seus hábitos cosméticos eram muito característicos. Naquela época, usar maquilhagem era um sinal de distinção e a rainha fazia-o profusamente com cerusa veneziana, um pigmento branco igualmente conhecido como alvaiade.

A maquilhagem dava-lhe um aspecto branco imaculado, quase virginal, e combinava com o seu epíteto de “Rainha Virgem”. Foi essa imagem de pele embranquecida que ficou para a história e chegou aos nossos dias.

Isabel I usava tamanha quantidade de maquilhagem para ocultar as numerosas e acentuadas marcas faciais deixadas por uma doença mortal que contraiu aos 29 anos: varíola. Conseguiu sobreviver, mas as cicatrizes deixadas pelo vírus no seu corpo acompanharam-na para o resto da vida.

Retrato de Isabel I (de autor anónimo, C. 1589).

Tal como a varíola, muitos outros vírus desempenharam um papel fundamental em episódios importantes da história: na literatura, na arte, na ciência, na política ou em muitas outras facetas terrenas que formam as arestas da nossa existência como espécie. Estes são apenas alguns exemplos.

1. A varíola e A PRIMEiRA CAMPAnhA DE VACinação MAciça

A varíola é uma doença causada pelo vírus com o mesmo nome, um orthopoxvirus altamente contagioso que pôs fim à vida do todo-poderoso Ramsés V, quarto faraó da XX dinastia do Egipto, e do imperador asteca Montezuma.

A extensão da fatídica varíola durante os séculos XVIII e XIX fez com que, em 1803, no país vizinho, o médico militar Francisco Javier de Balmis y Berenguer organizasse a “Real Expedição Filantrópica da Vacina”, apelidada de Expedição Balmis. O seu objectivo era vacinar todos os súbditos do império espanhol contra a doença.

A acção foi apoiada e financiada pelo rei Carlos IV, comprometido com a causa depois de ver a sua filha, a infanta Maria Teresa, morrer de varicela.A façanha, realizada entre 1803 e 1814, foi a primeira campanha de vacinação maciça da história.

Em 1980, a Organização Mundial da Saúde (OMS) certificou a erradicação da varíola após uma excepcional campanha de vacinação global liderada pelo epidemiologista Donald Henderson.

2. o VíRUS do MOSAICO do TABACO e o desenvolvimento da VIROLOGia

Em 1882, o alemão Adolf Mayer descreveu pela primeira vez a doença do mosaico do tabaco. Na mesma altura, Dmitri Ivanovsky também estava a estudar a patologia em São Petersburgo. Ivanovsky demostrou que o agente que a causava passava por um filtro esterilizante, sem se dar conta de que descobrira um novo tipo de agente infeccioso: os vírus.

O vírus do mosaico do tabaco permitiu o desenvolvimento da virologia e contribuiu significativamente para o conhecimento da natureza genética do ARN, o código genético e o avanço da biologia molecular e o conhecimento das propriedades físico-químicas e antigénicas das macromoléculas.

3. VíRUS Da IMUNODEFICIêNCIA HUMANA e SIDA: A PRIMEiRA GRANde PANDEMIA MEDIÁTICA

No final do século XX, o vírus da imunodeficiência humana (VIH) teve um impacto devastador nos hábitos sociais, económicos, sanitários e demográficos do planeta, tornando-se a primeira grande pandemia enfrentada pela sociedade tecnologicamente avançada.

Representação do VIH.

Nas suas fases finais, é habitual que ocorra uma das mais de 20 infecções oportunistas ou cancros relacionados com o contágio do vírus. Chegado esse momento, considera-se que a pessoa sofre da síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA).

Até à data estima-se que mais de 35 milhões de pessoas tenham falecido por causas relacionadas com a SIDA, incluindo celebridades como Freddy Mercury, Rock Hudson e Anthony Perkins, que ajudaram a dar visibilidade à doença.

A presença do vírus mudou o mundo, juntamente com os costumes, o comportamento, os hábitos sanitários, o consumo de drogas, os métodos de prevenção, as práticas médicas e as relações sexuais de milhões de pessoas.

4. o VíRUS do MOSAICO da TULIPa e o “NEGócio do ar”

O vírus do mosaico da tulipa provoca uma redistribuição dos pigmentos na flor, originando exemplares únicos e maravilhosos. Em meados do século XVI, afectou pela primeira vez o cultivo da tulipa na Holanda, dando origem a variedade imprevisíveis e irrepetíveis, que suscitaram a cobiça e o desejo dos compradores.

A posse de uma daquelas chamativas tulipas era símbolo de opulência e poder. Em 1623, o preço de um único bolbo era cinco vezes superior ao salário anual de um artesão.

Em 1637, a especulação dos bolbos de tulipa acabou. Houve inúmeras bancarrotas no país, a economia holandesa sofreu uma queda dramática e o panorama social foi reorganizado. O fenómeno ficou conhecido como windhandel (negócio de ar) e foi a primeira grande bolha económica da história.

5. O ENTEROBACTERIÓFAGO T4

O bacteriófago T4, ou fago T4, é um vírus que infecta a bactéria Escherichia coli e um dos organismos-modelo mais utilizados nos laboratórios científicos.

É fácil e seguro de cultivar, razão pela qual o seu estudo se intensificou a partir de meados do século XX. Graças a ele foram descobertos muitos dos princípios básicos e gerais da biologia molecular e da evolução destes patógenos. O pequeno vírus mudou o rumo da investigação científica e da ciência elementar a nível mundial.

6. qUe PAPEL desempenhou o SARAMPo na COLONIZAção da AMÉRICA?

O sarampo é uma doença viral muito contagiosa que pode causar complicações graves como cegueira, encefalite, diarreia intensa, infecções do ouvido ou pneumonia.

Segundo as estimativas da OMS e os Centros para o Controlo e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC), mais de 140.000 pessoas morreram de sarampo em todo o mundo em 2018.

A doença chegou ao continente americano no século XV, juntamente com os colonizadores espanhóis. Os indígenas não estavam imunizados contra a doença, razão pela qual as epidemias de sarampo e varíola contribuíram para os conquistadores Hernán Cortés e Francisco Pizarro, com o apoio de poucas centenas de soldados, conseguirem vencer poderosos exércitos consolidados como o asteca de Montezuma, no México, ou o inca de Huayna Cápac, no Peru.

7. O SARS-COV, um ponTO DE viragem na ECONOMia ASIÁTICA

O SARS-CoV é um coronavírus que foi detectado pela primeira vez no ano 2002 na província chinesa de Guangdong. É o responsável pela síndrome respiratória aguda grave (SARS). Segundo a OMS, mais de 8.000 pessoas adoeceram com SARS durante o surto de 2003. 774 morreram.

A nova doença fez com que o governo chinês impusesse quarentenas e confinamentos a grande parte da população, impedindo o desenvolvimento das práticas comerciais habituais. Como consequência, algumas empresas começaram a promover o comércio electrónico.

Por exemplo, o negócio da plataforma Alibaba cresceu 50 por cento. A empresa lançou a Taobao, que, em apenas dois anos, superou a eBay, transformando-se na líder do mercado chinês e facilitando o desenvolvimento do próspero comércio electrónico actual.

8. CoMO A FEBRE AMAReLA INTERRompeu A CONSTRUção do CANAL Do PANAMÁ

A febre amarela é uma doença viral aguda e hemorrágica, ocasionada por arbovírus do género Flavivirus e transmitida por mosquitos infectados dos géneros Aedes e Haemogogus. No final do século XIX, a doença interrompeu as obras do canal de Panamá. A sua construção atrasou-se 33 anos porque os trabalhadores adoeceram ou abandonaram o seu posto por medo do contágio.

Com efeito, a febre amarela, a malária e uma gestão desastrosa provocaram o abandono do projecto e o final do “canal francês”. Isto levou o governo dos EUA a financiar o projecto, obtendo os direitos de exploração e construção. Foi finalmente inaugurado no dia 15 de Agosto de 1914, tornando-se uma das obras de engenharia mais importantes da história.

9. a PESTE suína AFRICANA: Um fardo PARA o MERCADO dA CARNE DE porco em 2018

A peste suína africana (PSA) é uma doença altamente contagiosa causada por um vírus ADN da família Asfarviridae. Não representa uma ameaça para a saúde humana, mas é mortal para os porcos domésticos e javalis de todas as idades.

Uma vez que a PSA tem obrigatoriamente de ser declarada à Organização Mundial de Saúde Animal (OIE), quando há um surto numa suinicultura, todos os porcos têm de ser abatidos e devem ser implementadas medidas sanitárias estritas, acções que provocam prejuízos económicos directos e indirectos e consequências sociais nas regiões afectadas.

Em Agosto de 2018, um surto de PSA eclodiu no nordeste da China, propagando-se rapidamente pelo país. Apesar de a China ser um dos maiores produtores e consumidores de carne de porco do mundo, a doença eliminou 40 por cento destes animais no país. Centenas de milhões de animais morreram ou tiveram de ser abatidos.

O resultado foi uma escassez crónica de carne de porco e um aumento vertiginoso dos preços. As importações de carne de porco aumentaram, mas como não havia porcos suficientes no mundo para abastecer a China, os preços subiram em todos os países. Diante da impossibilidade de criar porcos, a China deu prioridade à produção de frangos. Além disso, deixou de comprar cereais e soja para ração de animais no mercado externo, afectando todos os mercados globais.

Célula macrofágica nas fases iniciais da infecção pelo vírus da peste suína africana, ampliada cerca de 1000x.

10. A VACiNA CONTRA A POLIOMIELITe, INSPIRAção MUSICAL

O vírus da poliomielite transmite-se de pessoa para pessoa quase sempre por via fecal-oral, mas também pode ser transmitido através da água ou alimentos contaminados. Durante o século XX, a doença alcançou proporções epidémicas. O seu combate foi um projecto preferencial para atentar a sua erradicação.

Em 1921, Franklin Delano Roosevelt contraiu poliomielite e o vírus deixou-o numa cadeira de rodas para o resto da vida. Foi por isso que ele iniciou a conhecida “guerra contra a pólio” quando se tornou presidente dos Estados Unidos da América em 1933. A popularidade de Roosevelt foi tão grande que lhe permitiu ser o único presidente a ganhar quatro eleições americanas.

Em 1963, o governo empreendeu uma agressiva campanha publicitária a favor da vacinação contra a poliomielite com a vacina Sabin. A vacinação de um dos filhos do compositor Robert Sherman inspirou-o a criar uma das melodias mais famosas da história do cinema: “A Spoonful Of Sugar”, de Mary Poppins.

11. O ADENOVíRUS HUMANO TIPO 12

Os adenovírus foram descobertos pela primeira vez em 1953 por Wallace Rowe. Foram isolados de um cultivo de células de tecido adenóide, daí o nome de Adenoviridae.

São vírus pequenos que incluem sete espécies de adenovírus humanos (de A a G) e 57 serotipos imunologicamente distintos. Em 1962, John Trentin e os seus colegas descobriram que o vírus causava cancro em crias de hamster em condições de laboratório. Esta foi a primeira demonstração de actividade oncogénica causada por um vírus humano.

Os adenovírus ajudaram os cientistas a estudar as funções dos genes e também a compreender o splicing do ARN mensageiro, a poliadenilação alternativa, os potenciadores e a inactivação das proteínas dos genes supressores de tumores.

12. VíRUS DA GRIPE H1N1, GRIPE ESPAnhOLA e BABY BOOM

A gripe sazonal é uma doença viral conhecida e temida. Algumas das suas estirpes provocaram terríveis pandemias. A mais notável, conhecida como gripe espanhola, causou a morte de 40 milhões de pessoas em 1918.

O agente causador foi o tipo H1N1 do vírus da gripe, o qual, ao desencadear uma tempestade de citocina desenfreada, conduziu ao descontrolo do sistema imunitário, causando inflamação e lesões pulmonares irreversíveis.

A pandemia revelou que as doenças infecciosas eram um problema que deverá abordado a nível populacional. Nos anos seguintes, muitos países mudaram a sua estratégia de saúde pública: optaram por adoptar o conceito de medicina socializada e reforçaram os sistemas de vigilância e os cuidados médicos.

O enorme decréscimo populacional foi compensado nos anos seguintes pelo efeito baby boom. Incentivado pelas estratégias de governos de vários países, impulsionou a natalidade, dando origem às famílias numerosas típicas de meados do século XX.

13. O VíRUS JOHN CUNNINGHAM

O vírus John Cunningham ou JC é muito comum. Com efeito, está presente entro 50 e 70 por cento da população humana. Embora se contraia durante a infância, parece permanecer latente até alguma circunstância (como a supressão do sistema imunitário) o reactivar e permitir a sua proliferação, que pode causar infecções cerebrais graves.

Existem pelo menos 14 subtipos de vírus associados a diferentes populações humanas. Devido à sua presumível co-divergência com os seres humanos, o vírus JC foi utilizado como marcador genético para acompanhar a evolução e migração humanas.

Foi possível observar que existe uma grande semelhança na sua presença nos nativos do nordeste da Ásia e nos nativos norte americanos. Esta constatação defende a hipótese de uma migração arcaica da Ásia para a América do Norte através da ponte de terra de Bering.

14. A PANDEMIA POR SARS-COV-2 e A INDúSTRIA HOLANDESA do VISon

O recente surto da doença COVID-19 causada pelo coronavírus SARS-CoV-2 foi relatado pela primeira vez em Wuhan (China) no dia 31 de Dezembro de 2019. Desde então, o vírus matou mais de 1.200.000 pessoas e acelerou mudanças profundas na nossa sociedade, como o nosso comportamento habitual, a forma como nos relacionamos e até as linhas de negócio de diferentes países.

Muitos animais são susceptíveis a serem infectados pelo SARS-CoV-2, sobretudo os visons, que evidenciaram problemas respiratórios semelhantes aos seres humanos.

Os Países Baixos são a quarta nação do mundo na produção de visons (cerca de seis milhões de animais por ano) para comercialização de peles. Embora o senado neerlandês tenha votado a favor da proibição da sua criação por motivos éticos em 2012 e permitido um período de transição de 12 anos, a situação mudou radicalmente: a rápida propagação do SARS-CoV-2 infectou mais de um terço de todas as unidades de criação de visons holandesas, demonstrando-se a transmissão do SARS-CoV-2 dos animais para os seres humanos.

^{* Adaptação de artigo de Raúl Rivas González, catedrático de Microbiologia na Universidade de Salamanca, publicado originalmente em The Conversation.}