O cúmulo da desumanização e objetificação das mulheres: o concurso da Miss AI
Este concurso Miss AI não é uma disputa entre diferentes criações de personagens mulheres, é um concurso de diferentes pacotes de estereótipos de beleza
Este ano, vamos ter o primeiro concurso de Miss AI, em que as concorrentes foram criadas através da inteligência artificial. São personagens que existem meramente no meio digital, com personalidades criadas, tal e qual as personas dos planos de marketing, mas com uma grande diferença: foram criadas a partir de e para seguir estereótipos de beleza. Claro que todas elas têm pele maravilhosa, são magras e bonitas dentro dos padrões atuais.
Se o facto de haver influencers de lifestyle e celebridades que editam as suas fotos ao extremo já é mau o suficiente, considerando a problemática dos padrões de beleza, imaginem o que é existir personagens fictícias criadas como se fossem pessoas reais idealizadas, ao ponto de não se perceber à primeira que foram criadas com Inteligência Artificial.
Neste contexto, a criação destas personagens representa obstáculos sérios à saúde mental das mulheres em três fases:
- Na própria criação, pois usam estereótipos de beleza pré-existentes dentro das sociedades em que os criadores se inserem;
- Na sua presença online, pois a sua representação de corpo espalha esses estereótipos pela esfera digital;
- E num terceiro momento, estas imagens alimentam a comparação nociva, destruidora de auto-estima e representatividade corporal, que tanto é fomentada pelos media, não fossem ainda comuns as revistas cor-de-rosa que comentam corpos de pessoas conhecidas como se o corpo delas fosse de domínio público.
No entanto, para além do impacto específico deste concurso de mulheres que não existem, importa refletir sobre os Concursos de Misses de onde advém este costume de avaliar mulheres pela sua beleza. Usarei como estudo de caso para comparação a Miss Universo.
Ainda estamos nos anos 50, com uns temperos leves de modernidade
O concurso Miss Universo existe desde 1952, época em que a dona de casa dedicada à família, com cintura de vespa, era o ideal de beleza. A definição mais precisa seria “the hourglass housewife”. Este concurso é o apogeu dos concursos de beleza para mulheres adultas e, embora já tenha mudado em algumas questões fulcrais, como veremos de seguida, continua a ter como ponto principal, como espetáculo, a valorização primária da beleza feminina, e só em segundo plano do seu intelecto. (Isto não está relacionado com as capacidades cognitivas das concorrentes, mas com as prioridades do concurso). Mesmo assim, há certos pontos que não deixarei de mencionar, para apresentar os dois lados da moeda:
- Os concursos são plataformas que podem impulsionar inícios de carreira (veja-se o caso da nossa Inês Brusselmans e de Priyanka Chopra);
- Ajudam a quebrar estereótipos dentro do género feminino, ao aceitar mulheres trans (como a portuguesa e maravilhosa Marina Machete, que realmente fez a diferença);
- Passaram a aceitar mulheres plus size, havendo uma concorrente, Jane Dipika Garret, do Nepal;
- E, no último ano, retiraram o patamar máximo de idade (anteriormente as concorrentes teriam de ter no máximo 28 anos).
Não obstante, estas últimas são apenas pequenas mudanças, as mínimas no mundo em que vivemos, sendo que a beleza exterior tem um peso exacerbadamente alto na competição. Quanto ao calendário das provas do concurso, após as entrevistas preliminares, começa o live show. Neste, a primeira prova é um desfile com fato de banho e depois outro com vestido de gala. Numa primeira fase televisiva, é só isto que conta. Passam apenas 20. Depois de mais eliminatórias, só as concorrentes do top 5 terão de responder ao vivo a perguntas sobre o impacto que querem trazer à sociedade, em termos de igualdade de género, educação, etc. Além disso, nas regras de participação, o concurso explicita (pelo menos, vá lá) que as mulheres devem ter um papel social relevante nas suas vidas, fazendo voluntariado e lutando por causas sociais.
No entanto, a descrição dos valores do concurso também dita que “as mulheres que concorrem representam o exemplo moderno e global aspiracional para o potencial presente em todas as mulheres.” Honestamente, a descrição aspiracional do evento faz-me lembrar as revistas direcionadas a donas de casa dos anos 50, sobre a mulher ideal — o que não é de admirar, visto que foi nessa mesma altura que começou o concurso. Estes padrões de beleza criam um fosso de separação entre as mulheres idealizadas e as que devem aspirar a ser como elas.
capa de revista dos anos 50, retirada do site “120 Years of the Perfect Woman”
A meu ver, não é uma questão de alterar os padrões do concurso, mas deveria antes ser de repensar a relevância da existência de concursos de beleza. Não se limitam a avaliar a beleza da mulher, com todos os preconceitos associados, mas também continuam a perpetuar a competição estética entre mulheres. Claro que isto não invalida que haja uma noção de comunidade entre as concorrentes, como já foi relatado por quem participou, mas na sua génese, este evento não deixa de ser um concurso de beleza.
Se por um lado não me interessa criticar gratuitamente quem participa nestes concursos, porque consigo perceber o desejo de criar uma plataforma, por outro assusta-me este costume tão patriarcal de concursos de beleza para mulheres. A verdade é que, por volta da mesma altura, também foi criado umconcurso do “Mr. Universe”, em que se premeia os corpos masculinos mais fisicamente esculpidos. Ora, ambos representam o mesmo: o pináculo dos estereótipos de género. No entanto, o da Miss Universo tem uma cobertura mediática bem maior, visto que, como sabemos, a objetificação sexual da mulher vende muito mais.
Tendo em conta a problemática pré-existente dos concursos de beleza, este novo concurso da Miss AI acarreta mais uma camada: uma idealização de beleza tão manipulada que as mulheres apresentadas nem sequer existem na vida real, tratando-se de uma desumanização efetiva das mulheres. Não se trata de um mero prémio pela criação de imagens realistas através da Inteligência Artificial. Toda a gente sabe que, graças à atenção dada pelos media e ao hábito da população de se entreter com a vida alheia de mulheres, opinando constantemente sobre a sua aparência física, o conceito de um concurso de Misses vende. “E se vende, faz-se.” Mas a custo de quê? De alimentar cada vez mais a máquina que quebra a autoestima das mulheres, de forma a que procurarem o próximo produto que lhes promete amarem mais o seu corpo? Claro que não há mal nenhum, pelo contrário, em querermos cuidar do nosso corpo, mas aqui estamos a falar de outro patamar, de ter uma referência uma idealização nociva para a saúde das mulheres.
Acima de tudo, por muito que estas mulheres não existam na vida real, afetam diretamente mulheres e meninas que existem. Se já pode ser nocivo para uma mulher adulta, imaginem o que pode fazer a uma adolescente com complexos em relação ao seu corpo. Neste contexto, os estudos realizados pela marca Dove demonstraram que 1 em cada 3 mulheres sente-se pressionada em modificar a sua aparência graças às imagens que consome online; e que 1 em cada 5 mulheres até ao 18 anos estaria disposta a sacrificar até 5 anos de vida, se isso lhes garantisse o seu ideal de beleza.
Se 20% das raparigas dariam até 5 anos de vida para ter o corpo que mais desejam, acham que um concurso de mulheres idealizadas por AI, criadas com tal pormenor que parecem reais, vai ajudar em quê? Não vai ajudar em nada, só vai piorar. Nenhuma das concorrentes é plus size. Nenhuma tem celulite, estrias, assimetria facial, borbulhas, textura de pele. No entanto, todas as mulheres reais de forma natural têm tudo isto ao longo da sua vida. Este concurso MIss AI não é uma disputa entre diferentes criações de personagens mulheres, é um concurso de diferentes pacotes de estereótipos de beleza.
Uma coisa é certa: se mudássemos tudo o que nos incomoda no nosso corpo, encontraríamos mais coisas. Esta busca insana por um ideal de beleza é uma estrada perigosa sem fim.
“She wins who calls herself beautiful and challenges the world to change to truly see her.” Naomi Wolf, The Beauty Myth