Era só um cão…
Foi uma experiência única ter privado com este extraordinário ser vivo. Não lhe ensinei nada, mas aprendi tanto com ele. Julgo mesmo que será por isso que partem tão cedo, afinal já não andam por cá a fazer mais nada, já sabem tudo.
Era só um cão…
Deambulava cabisbaixo pelos caminhos que habitualmente percorro, quando sou abordado por alguém que me pergunta: – Então sozinho? Hoje não veio com o seu companheiro?
Tentei responder. A voz saía-me embargada e, ao ver o meu desconforto, o interpelante prontamente concluiu: – Ah, já percebi. Mas olhe, deixe lá, tem de pensar que era só um cão!
Foram quase treze anos de um companheirismo sem igual, de momentos inolvidáveis; fizemos de tudo para que ele se sentisse sempre acarinhado e feliz; devolvia-nos a felicidade em tamanho XXXL.
Agora, é o passar de uma casa cheia, e de uma alma a transbordar, para um indesejável vazio. Falta(-nos), faz muita falta. Sobra, sobra muita saudade!… E não, não era só um cão!
O mar hoje estava carregado, tão carregado quanto o peso desta dor que trago no peito. A praia despida de gente e de sentimentos, sem sentido, sem horizontes… o Sol, o meu “Sol”, esse, apagou-se! Os pássaros, aqui do nosso jardim, desapareceram, perderam o rumo e o destino; já não está mais quem espalhava pelo chão os snacks da sua ração para com eles partilhar.
… E não, não era só um cão!
Quando chegou, dei-lhe o nome de Poker, não porque [eu] fosse ou seja jogador, mas apenas por saber que é um jogo mental que ele tão bem praticava.
Desde pequenito que constantemente o fazia comigo, escondendo-se, driblando-me, testando-me, pondo-me à prova. Procurava-o no jardim, atrás dos cedros, sob o limoeiro, nos recantos mais improváveis, mas sempre acabava por o encontrar. Hoje, ao engano, já fui três ou quatro vezes lá fora, ao jardim, à sua procura. Sinto-o, mas já não o consigo ver!
… E não, não era só um cão!
Foi uma experiência única ter privado com este extraordinário ser vivo. Não lhe ensinei nada, mas aprendi tanto com ele. Julgo mesmo que será por isso que partem tão cedo, afinal já não andam por cá a fazer mais nada, já sabem tudo.
Com o meu bom gigante deixei de ser conhecido pelo meu nome e passei a ser «aquele senhor do cão ‘grande’»; aprendi verdadeiramente o sentido das palavras amor, lealdade, solidariedade, amizade, companheirismo, doçura, ternura, disponibilidade e entrega incondicionais, mas também resistência (não gosto da palavra resiliência), bravura, coragem e superação. Nunca ganiu ou sequer lhe ouvi um gemido, nem expressava qualquer queixume de dor física quando, em alguns momentos, sei que não esteve imune a ela.
… E não, não era só um cão!
Quis o destino que se cruzasse connosco há quase 13 anos. Por essa altura ainda tinha os meus pais vivos. Atravessou, na nossa companhia, a perda do meu pai, primeiro, e 4 anos depois, a partida da minha mãe. Foi com ele que libertei a dor silenciosa que me entupia. Estava sempre disponível, fossem 3 ou 4 da manhã, para me acompanhar, sem destino ou direcção, para que eu pudesse soltar os meus gritos, as minhas lágrimas e mitigar a dor. E agora, meu Poker, como vou fazer para gritar e chorar por ti?
… E não, não era só um cão!
Mais recentemente, veio a Alice. As brincadeiras com ela. A superprotecção à menina que ensaiava os primeiros passos. As corridas que fazíamos, com a Alice no triciclo empurrado pela avó, eu com o Poker pela trela e, depois, claro, a Alice ganhava sempre.
Há, por isso, um infindável número de estórias hilariantes que pretendo contar um dia se, e quando, me recompor.
… E não, não era só um cão!
Quando faleceu Rita Lee, ouvi do seu companheiro Roberto Carvalho uma frase de que gostei particularmente, e da qual agora me valho para a ajustar ao momento: “Rita levou com ela um pedaço enorme de mim, mas em compensação ficou em mim um pedaço enorme dela”.
É isto, exactamente, porque o Poker, não, não era só um cão!… Foi, sim, uma benção!”
Texto de Alfredo Correia de Araújo, que segue a ortografia anterior ao Novo Acordo
Partilhe as histórias dos seus animais de estimação (que devem ser muitas). Envie um texto, fotos e vídeos para o e-mail para [email protected] e o seu testemunho pode ser publicado no site da SIC Notícias no especial Mundo dos Animais.