O adeus e as lágrimas de Afonso Figueiredo: «O futebol já não me dava felicidade»

o adeus e as lágrimas de afonso figueiredo: «o futebol já não me dava felicidade»

O adeus e as lágrimas de Afonso Figueiredo: «O futebol já não me dava felicidade»

As despedidas têm sempre um tom de precocidade. Parecem demasiado cedo, demasiado antes do adeus perfeito. É assim na velhice, é assim aos 31 anos. Após duas décadas no futebol federado – 2003/2023 – Afonso Figueiredo enche o peito de coragem e anuncia o fim. O fim, «o meu único amigo», na icónica canção dos The Doors. O zerozero é convidado para esta derradeira entrevista, já no estúdio que Afonso prepara para dar o próximo passo. Uma conversa pejada de emoção, ou não fosse esta uma composição de amor. 

zerozero – O que significa a inauguração deste novo estúdio?

Afonso Figueiredo – Significa o meu fim de ciclo no futebol. Hoje, oficialmente, anuncio que deixo de ser futebolista. A decisão já foi tomada há mais tempo e mudo-me para este novo relvado, este novo contexto. Será o meu novo estádio, digamos assim.

zz – Este anúncio formal é feito mais a pensar em quem está de fora? O Afonso está em paz com a decisão?

AF – Penso que sim. É uma coisa pensada já há algum tempo. Sempre disse que iria jogar e estar no futebol enquanto sentisse prazer. Este sempre foi o meu sonho desde miúdo, mas cheguei a uma altura da minha vida em que já não me identificava com o mundo do futebol, já não me trazia felicidade. ‘Não quero continuar assim, não estou feliz por variadas situações’. Foi isso, pensei que não estava bem. Por culpa de algumas decisões minhas e por outras que foram acontecendo e que me roubaram o brilho que sentia ao falar de futebol. Isto custa, não é fácil, foram muitos dias a pensar nas coisas, sem dormir. Mas tomo esta decisão em consciência.

zz – Deixou de ser feliz a jogar futebol ou deixou de ser feliz no mundo do futebol?

AF – Nunca vou deixar de ser feliz a jogar futebol, nem que seja só com os meus amigos. Seja onde for. Essa paixão nasce connosco, ainda agora vejo isso com o meu filho, e é muito difícil perdê-la. Mas é fácil ir deixando de gostar do mundo do futebol ou, pelo menos, de gostar tanto como gostava no início. Por tudo o que eu passei e vivi, e também pelo que vi alguns colegas a passar, já não me sentia com força suficiente para continuar.

zz – O que mais o entristeceu nestes últimos anos e que o levou a tomar esta decisão com apenas 31 anos?

AF – Várias situações. Gosto de me lembrar do futebol, do jogo, e por isso vou criar um podcast para falar sobre o lado bom deste mundo. Queria sair de consciência tranquila e evidenciar o melhor que este percurso me deu. Tenho de falar dos amigos que fiz, do balneário, as boas pessoas que conheci. Isso fez a diferença. É um cliché, mas tenho de dizer isto: espero que os meus treinadores e colegas falem de mim e se lembrem de uma boa pessoa, uma pessoa verdadeira. Valorizo isso mais do que a qualidade de futebolista. Um jogador é pai, é filho, é irmão, é amigo, e isso é muitas vezes esquecido. O jogador é muitas vezes tratado como ‘carne para canhão’ e isso foi-me entristecendo.

zz – O Afonso sentiu-se muitas vezes ‘carne para canhão’?

AF – Sim, a partir de dada altura senti que o sucesso não dependia só de mim e do meu trabalho. No futebol, as coisas dependem muito do treinador, de não ter lesões, da sorte, e nesse sentido acabei por não ser tão feliz como queria nas últimas épocas.

zz – No último jogo feito (Faro, 22 de abril de 2023) já tinha a consciência de que seria a despedida ou estava ainda com vontade de dar mais uma oportunidade ao futebol?

AF – Vou ser sincero. Já tinha consciência de que isto podia acontecer e já ia vivendo as coisas como se fossem a última vez. Por um lado, isso era bom. Estive três anos seguidos sem clube até ao fecho do mercado de transferências e só arranjei colocação posteriormente. Foi assim no Moreirense, no Estrela da Amadora e no Penafiel. Isso fez-me mossa. Estava constantemente à espera de coisas novas e não me via nas opções dos clubes. Vi muita gente desesperada e a passar também por situações destas. É muito duro e é duro por não entendermos os motivos dessa falta de oportunidades. Sempre foi difícil aceitar isso. Neste último caso, com o Penafiel, só tive a oportunidade devido às lesões de outros colegas. Por muito que não queiramos, sentimos que só vamos para o clube x porque alguém se magoou.

o adeus e as lágrimas de afonso figueiredo: «o futebol já não me dava felicidade»
Tudo começou em 2003, no Sporting @Arquivo Pessoalzz – Passou a sentir-se demasiadas vezes uma segunda opção. 

AF – Certo. Dizemos muitas vezes ‘gostava de saber o que sei hoje quando tinha 25 anos’ e é verdade. Hoje tenho uma maturidade diferente, não ligo nada ao que pensam os outros e isso foi tomando conta de mim ao longo dos anos. Se não fosse isso, teria sido ainda pior. ‘Ei, o que vão achar as pessoas ao verem-me aqui num clube pior?’, enfim, isso deixou de me chatear. Fui ficando mais homem e a ter mais calma no que pensava e no que fazia. Foi-me útil nesta fase final. Pensei muito bem neste fim e eu próprio abordei o meu último treinador [Hélder Cristóvão] a dar-lhe conta desta possibilidade. Tive uma conversa com ele, porque não estava a ser feliz [em Penafiel]. Foi uma das épocas mais duras que tive e a decisão foi tomada no final da mesma. É a única tristeza que levo no futebol: não ter tido uma última época feliz. Nem tudo acaba como idealizamos. Sonhava acabar no estádio, com os meus filhos, era isso que eu mais gostava de ter feito. A vida quis que fosse desta forma. Estou de consciência tranquila e realizado.

«A parte mental não me deixa continuar»

zz – Nos últimos meses teve convites para continuar a jogar?

AF – Sim, tive. Este ano até tive oportunidades mais cedo do que nas épocas anteriores. A minha vida mudou muito no dia em que fui pai. Muitas pessoas não conseguem entender, mas quando os nossos filhos nascem as nossas prioridades mudam. Sempre fiz tudo a pensar em mim, desde os dez anos, até ao dia em que nasceu o Mateus. A partir daí priorizei o meu filho, a minha mulher Rita e depois a Alice, a minha filha. Isso fez com que eu não pudesse tomar todas as opções que seriam melhores para mim profissionalmente mas, nesta parte final, a minha família passou a ser a prioridade. Estive longe deles um ano [Amadora] e tive a certeza disso: ‘não gosto tanto do futebol para descurar a parte familiar’. O mais importante era o equilíbrio e, não o conseguindo, preferi estar perto deles e optei por não ir para longe. Não me arrependo nada. É com eles que quero estar.

o adeus e as lágrimas de afonso figueiredo: «o futebol já não me dava felicidade»
A época 15/16 foi a melhor da carreira @Arquivo Pessoalzz – Como é que os seus familiares e amigos mais próximos reagiram a este adeus aos relvados? 

AF – Não sei se foi no Natal que contei à minha família… eles sempre estiveram muito presentes, apesar da distância entre Lisboa e Porto [Afonso vive na Invicta, mas é lisboeta]. Aos 17 anos saí de perto deles. Senti que alguns deles ficaram aliviados, porque sentiam que eu já não era feliz. Noutros senti que queriam a continuidade, porque achavam que era o futebol a fazer-me feliz. Sempre disse que não ia jogar ‘só porque sim’. No dia em que perdi o prazer, senti que tinha de me afastar. Não tem nada a ver com os 31 anos, sinto-me em excelentes condições físicas, mas a parte mental não me deixa continuar. Hoje fala-se muito de saúde mental e bem. O resto só funciona se a cabeça funcionar e a minha não estava ok. Quis endireitar a cabeça, para ficar bem e ver todos bem à minha volta. Tenho a família a torcer na mesma por mim, agora de outra maneira. A minha mãe vai-se preocupar menos, aqui no estúdio ninguém me vai entrar de carrinho (risos).

zz – Ser futebolista profissional não é só glamour, carros e roupas luxuosos. Há treinos diários, à chuva e ao frio, salários baixos, muito esforço. Foi isso que mexeu com a sua saúde mental?

AF – As pessoas têm uma ideia errada sobre o futebolista. O que mais me entristece e chateia é ter pessoas atrás de um telemóvel a insultar. Temos uma profissão de maior exposição, mas somos homens. Fui adepto, jogador e todos merecemos ser respeitados. O adepto confunde muitas vezes as coisas, por achar que tem o direito de cobrar. Não me acredito que haja um jogador que não se esforce para ganhar um jogo. Isso não existe. Isto é a nossa vida, a nossa família e coloca muito em causa. Todos trabalhamos para ganhar e ter uma semana feliz – é muito diferente depois de uma derrota. Tudo o que se passa à volta do futebol mexe com as nossas cabeças. Hoje fala-se mais, felizmente, e os clubes estão mais preparados para ajudar.

zz – Sentiu esse cuidado pela saúde mental nos seus clubes ou é uma coisa mais recente?

AF – Acho que é mais recente. No Rennes, o clube de maior dimensão onde estive, até uma senhora para nos cortar as unhas dos pés tínhamos (risos). Havia de tudo e mais alguma coisa, mas não havia alguém especializado nesse trabalho. E no Rennes passei uma fase muito difícil a nível de cabeça. Não foi no clube que me tratei. As pessoas falam mais hoje em dia.

zz – Procurou ajuda profissional ou através da sua família?

AF – Procurei na minha mulher, por exemplo, porque eu estava longe de Portugal e isso não ajudou. Foi um passo muito grande na carreira, foi a desilusão de não ter ido aos Jogos Olímpicos, foi o ter passado de ser titular no Boavista e de ir à seleção para estar de repente a fazer jogos numa equipa B… a cabeça começa a pensar e a questionar. ‘Será que tenho qualidade para estar aqui?’ ou ‘será que fiz a escolha certa?’. Ter este tipo de pensamentos a treinar e a jogar tira-nos o foco do principal. Na altura falei com o Eder e ele ajudou-me muito, até por ter passado por coisas parecidas em França. Fico orgulhoso ao lembrar-me do que passei em França e de ter ganhado essa guerra. Consegui voltar a um nível muito superior, depois de ter estado em baixo. Consegui levantar-me, é o que mais me orgulha na minha carreira.

«Espero poder ser um Rui Jorge para alguns»

zz – Falemos sobre futuro. Estamos aqui num espaço muito bonito, onde será gravado o podcast ‘Entrelinhas’. Além disso, o que pretende fazer a curto/médio prazo?

AF – Primeiro, quero trazer para este estúdio a melhor parte do futebol. A parte em que podemos ser verdadeiros e dizer o que pensamos. Ter conversas diferentes das que temos no mundo do futebol, onde é tudo muito controlado. Há algum medo e respeito por quem nos paga os salários, por isso temos de ser muito corretos e ir ao encontro do que nos pedem. Deixava que o futebol, nesse sentido, fosse mais real. Aqui no meu podcast poderemos ver um lado diferente dos jogadores, dos treinadores, de pessoas ligadas ao futebol. Jornalistas, também. Quero trazer aqui o melhor que o futebol tem.

zz – Também tem o Nível II do curso de treinador. Tem a ambição de treinar?

AF – Nunca pensei em fazer isso logo depois de deixar de jogar. Tirei os cursos para ficar com um plano B. Fiz questão disso, pensar no pós-carreira. Se surgirem oportunidades interessantes, poderei avançar nesse sentido. Não estou a pensar nisso loucamente. Acho que terei prazer em lidar com miúdos da formação e ajudá-los a atingir os seus sonhos. Poder ser um Rui Jorge para alguns. Também me imagino no futebol profissional, claro.

zz – Para o fim é obrigatório falar de quem mais ajudou o Afonso: a sua família. Quem é que merece uma homenagem pública neste final de conversa?

AF – [Afonso emociona-se] Esta é a parte mais difícil e eu sabia que ela ia chegar. Hoje sou pai e tenho mais noção dos sacrifícios que um pai faz por um filho. Sou um sortudo. É importante termos pais que não nos impingem nada, que não nos obrigam a fazer algo que não queremos fazer. Sempre tive um apoio gigante dos meus quatro pais. Tenho uma família grande (risos). Começo por agradecer ao meu pai, que sempre me acompanhou para todo o lado. Quando olho para o meu filho, consigo dar mais valor a essas pequenas coisas. Um pai sempre vai querer o melhor para o filho. O meu pai sempre esteve lá, nos piores e nos melhores momentos. Estar longe deles obrigou-me a crescer, mas nunca me deixaram de apoiar, nunca deixaram de me ligar, de saber do que eu precisava. Nos momentos em que eu quis desistir, e foram muitos, ligava-lhes a chorar para eles me virem buscar. E eles sempre me deram os conselhos certos, na altura certa. Os meus pais, os meus irmãos, os meus avós, o meu bisavô que ainda me viu jogar com noventa e tal anos. Foram eles os mais importantes. Eles e a família que eu criei.

zz – Essa família mais recente e que tudo mudou.

AF – A Rita, o Mateus e a Alice. A Rita apareceu numa altura importante da minha vida, deixou a vida dela para trás e veio comigo para França. Para acompanhar a minha carreira. Sem eles nunca teria conseguido chegar onde cheguei. A minha gratidão total vai para eles, para os meus amigos que nunca deixaram de me ir ver ao estádio, mesmo estando longe. Queria muito fazer-lhes este agradecimento. Tive muito mais do que alguma vez sonhei, do que pedi e só posso estar feliz por isso.

zz – Há alguma tristeza nesse agradecimento?

AF – A única tristeza é ter o meu filho de cinco anos e saber que ele não vai continuar a ver o pai a jogar futebol. Sei que ele tinha prazer nisso, cada vez gosta mais de futebol. Mas sinto que não seria o jogador que fui. Peço-lhe que tenha orgulho no pai que sou, nos conselhos que lhe darei, tudo farei por isso. Vou-lhe mostrar vídeos e camisolas, há muita coisa para ele ver (risos). Deixo-lhe um bom legado.

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