Reparações históricas
Reparações históricas e culturais devem ser feitas, não só entre nações, não só entre religiões, mas também em nome da coesão social. Todas as comunidades vítimas de perseguição durante longos períodos na História devem incluir-se neste modelo de reparação histórica e cultural do qual resulte o não esquecimento, o não ressentimento e, acima de tudo, a conciliação para que não voltemos ciclicamente a travar batalhas como a do conflito Israel-Palestina
Reparações históricas
“Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isso.”
As palavras são do Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, ditas na véspera dos 50 anos do 25 de abril, em jeito de lembrete do que ele próprio já havia proferido na Assembleia da República por ocasião da visita oficial de Lula da Silva, Presidente da República Federativa do Brasil, no mesmo período do ano passado.
Faço a minha declaração de interesses. Sou filha de um ex-preso político da PIDE que, a 21 de fevereiro de 1973, era ele ainda menor de idade, foi acordado e levado da casa dos seus pais, às 6h00, nas traseiras de um jipe com cães-polícia, até ao Pavilhão da Divisão de Investigação da Delegação da PIDE em Luanda, arrastado pelo agente Baltazar do Nascimento “Bulas”.
O meu pai, para além de vítima de tortura, viu suspensa a sua juventude, interrompidos os seus estudos no então Liceu Salvador Correia, viu-se privado de liberdade de fevereiro de 1973 até junho de 1974 e apartado do convívio familiar salutar a que qualquer adolescente da idade dele tem direito.
Da mesma noite, um amigo do meu pai, Vitoriano Ferreira Nicolau, igualmente ex-preso político e ainda vivo, fez-me o seguinte relato:
“Entrou o Bulas no meu quarto, eu tinha alguns panfletos e livros sobre a minha mesa. Identificaram-me…. Entrei na parte traseira do Land Rover, havia um cão-polícia e havia o informador sentado à frente que eu não reconheci. Ele estava proibido de se voltar e eu de me virar para ele. Circulámos um pouco à volta, provavelmente para eu não me aperceber da rota, e seguimos para a PIDE, para o São Paulo. Entrámos pelas traseiras, do lado da antiga Administração. Atrás de mim vinha um outro carro, provavelmente com outros prisioneiros. Durante o percurso fui levando pancada. A pressão do cão não era brincadeira. Estava tonto, fui sendo empurrado. No pavilhão sou recebido por cães-polícias. Outros cães-polícias. Atirado para a cela 4 ou cela 5, já não me lembro, a solitária. Ali fiquei, na posição que depois soube que se chamava estátua – de pé, de braços caídos sobre o corpo, defronte a um foco de luz intenso direcionado para aminha face. Perdi a noção das coisas, quando já não aguentava fechei os olhos, caí de joelhos (…)”
Nasci após 1974 num país outrora sob o jugo colonial e num ambiente familiar profundamente politizado; o tema reparações históricas interessa-me particularmente, especialmente agora que abraço o doutoramento em História (pós-colonial).
O colonialismo fez um incontável número de vítimas que somou às vítimas herdadas da escravatura. Como um tapete vermelho escada abaixo, entrou pelas gerações fora e foi ceifando-as uma após outra, ora de forma mais fria, ora de forma mais subversiva. Sempre em crescendo.
O tema reparação histórica não deve cingir-se, exclusivamente, aos países colonizados ou colonizadores; é um tema central de interesse mundial que exige maturidade política de todas as nações, particularmente as com economias desenvolvidas, no sentido destas últimas se unirem na criação de um modelo de reparação universal e justo.
Todas as comunidades vítimas de perseguição durante longos períodos na História devem incluir-se neste modelo de reparação histórica e cultural do qual resulte o não esquecimento, o não ressentimento e, acima de tudo, a conciliação para que não voltemos ciclicamente a travar batalhas como a do conflito Israel-Palestina.
A História é cíclica também porque, na dialética entre vencedores e vencidos, acontecimentos do passado são ocultados ou subvalorizados em prol da narrativa vencedora. Os lugares de poder direcionam, quase sempre, o curso da história.
França, Bélgica, Alemanha, por exemplo, implantam políticas de reconhecimento de crimes contra a humanidade, crimes patrimoniais e práticas contra a dignidade humana das populações de países colonizados. Do oficial pedido de perdão da Alemanha perante a Namíbia, aos atos simbólicos do Governo de Macron perante a Argélia, assumir que o não dizer na História tem custos transgeracionais é urgente.
Do vanguardismo pós-colonial ainda não resultaram balas de ouro, uma declaração universal que sirva o propósito de criar legislação, procedimentos, regras que permitam que uma nação, grupo étnico ou região vítima de opressão possa reclamar reparação com base num estatuto retificado internacionalmente.
O ideal fundador da Organização das Nações Unidas e da sua corte jurisdicional, o Tribunal Internacional de Haia, pode servir de alavanca para, como modelo que resultou da II Guerra Mundial, ser modelo a aplicar num mundo pós-colonial.
O cânone “restaurar à condição original” é um princípio do Direito Internacional que obriga os Estados a reparar danos decorrentes de atos ilícitos cometidos pelos mesmos (Responsabilidade Internacional dos Estados), pelo que argumentar que, da mesma forma que não se coloca a questão de Portugal pedir a França indemnizações pelas invasões napoleónicas, também não existe qualquer necessidade de proceder a restituições ou reparações por políticas esclavagistas e coloniais é tão desonesto como ignorante.
O dicastério para diálogo inter-religioso – instituído pelo Vaticano na Constituição “Praedicate Evangelium”, promulgada pelo Papa Francisco em 2022 – é um outro exemplo de conciliação com vista à inclusão, confirmando o caminho do diálogo numa “postura de escuta, estima e respeito”, como se lê no artigo 148.º dessa Constituição Apostólica.
Reflitamos sobre estes exemplos.
É urgente e necessário que Portugal, país que se candidata ao Conselho de Segurança da ONU para o biénio 2027-2028, findo o mandato do atual secretário-geral António Guterres, aproveite as palavras do Chefe de Estado Marcelo Rebelo de Sousa para performatizar a sua imagem de ator político da paz.