Este é o momento para fazer uma "profunda reflexão" sobre o Ministério Público. Artigo da procuradora-geral adjunta é "demolidador" e deveria ser "um grito de alerta"

Procuradoria-Geral da República

O artigo que a procuradora-geral adjunta Maria José Fernandes publicou esta segunda-feira no jornal Público é “um grito de alerta que todos nós devíamos ter presente”, afirma o advogado Paulo Veiga e Moura. “O Ministério Público (MP) precisa de uma reforma profunda. Isto tem de mudar drasticamente e esta talvez seja uma boa altura para pensar nisso”, diz o advogado à CNN Portugal. Essa é também a opinião de João Massano, presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, que considera o artigo “demolidor para o MP” e reafirma a “necessidade de rever todo o sistema”.

No artigo, a procuradora-geral adjunta (PGA), embora sem se referir à Operação Influencer, questiona como foi possível chegar até aqui, ou seja, até “à tomada de decisões que provocaram uma monumental crise política e cujas consequências vão ainda no adro”, e põe em causa os métodos de trabalho da investigação do MP, designadamente do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). A procuradora alega, entre outros pontos, que “os desfechos de vários casos já julgados permitem extrair que há aspetos do trabalho dos procuradores de investigação a carecer de revisão e aprimoramento pelo exercício da autocrítica”. Maria José Fernandes escreve que é por isso que somos “surpreendidos, de vez em quando, com buscas cuja utilidade e necessidade é nenhuma, pese embora quem as promove sempre se escude no argumento de opacidade”.

Paulo Veiga e Moura sublinha que este é um artigo “muito interessante pois dá uma visão de quem está por dentro” e conhece bem o funcionamento do MP. E destaca três pontos que, na sua opinião, merecem reflexão. Primeiro, “quando o partido dito de extrema-direita aparece a defender o MP, sabemo que algo está profundamente mal no MP, isto parece-me óbvio, é preocupante”, diz o advogado.

Depois, Veiga e Moura afirma que “nenhuma estrutura organizacional pode andar à rédea solta, não podemos deixar os elementos da base a fazer livremente a fazer o que lhes apetece. Terá de haver diferentes estádios de ponderação, de forma que haja um peso sobre as decisões, que não podem ser fruto de motivações pessoais. O resultado disto não afeta apenas uma pessoa, afeta a estrutura toda”. Tal como a PGA, o advogado considera que “o sindicalismo dentro do MP mina o seu funcionamento pois permite que outros interesses se intrometam”.

Finalmente, é preciso refletir sobre “a interpenetração entre a justiça e a comunicação”, diz o advogado. “Determinadas personagens são os justiceiros do século XXI, quanto mais acusarem mais importantes são para a comunicação social e, por isso, mais poder têm”, diz, corroborando as palavras da PGA. Veiga e Moura lembra, por exemplo, como “parte da comunicação ficou em alvoroço porque não houve prisões preventivas” no Processo Influencer. “Eu percebo que a comunicação queira sangue, mas isso não pode afetar a justiça. O juiz e os procuradores não têm de ser heróis, têm de estar no seu canto a fazer o seu trabalho.”

É por isso que a reforma do MP é necessária, defende: “Quando um indivíduo é detido durante 5 dias e ao fim desse tempo o mandam para casa sem qualquer acusação, nós, como cidadãos, temos o direito de exigir que alguém seja responsabilizado, pelo menos internamente. E os procuradores não atuam com o zelo que é exigido a qualquer pessoa na sua profissão, têm de responder. Porque se o procurador do MP sente que tem impunidade, faz o que quiser. Aconteceu agora com pessoas importante mas pode acontecer a qualquer pessoa, podemos ser nós.”

João Massano recorre ao mesmo exemplo do autarca de Sines: “Como é que uma pessoa que tem um cargo público de repente está detida para interrogatório e seis dias depois o juiz de instrução manda-o para casa e diz que não há nada. Como é que se limpa a imagem daquela pessoa? Como é que consideramos vulgar deter alguém para prestar declarações? A mim parece-me que há um abuso claro na utilização desta medida, que só deve ser usada em situações extremas quando um indíviduo é detido em flagrante delito ou se puser em causa as investigações ou se se recusa a colaborar ou há o perigo de fuga”, explica.

Este advogado concorda com algumas das críticas feitas pela PGA, nomeadamente no que toca ao facto de a estrutura do MP “promover a autonomia e a independência” e ao “risco da atomização da justiça”:  “A advocacia, a magistratura judicial e a magistratura do MP tomam decisões sem ter em conta os outros, não há uma uniformização. Por exemplo, nunca houve como agora revisão de sentenças de primeira instância pelos tribunais superiores, e isso revela que há grandes divergências”, explica. “Não há noção de conjunto, uma ideia que todos trabalhamos para o bem comum e que a justiça trabalha para o cidadão. Pelo contrário, há muitas pessoas que não trabalham em equipa e que se preocupam principalmente com a sua situação e com os benefícios que poderão tirar. Não são todos, claro. Como em todos os lados, há pessoas muito diferentes e há bons profissionais. Mas bastam alguns para prejudicar a imagem de toda a instituição e leva a um descrédito da instituição.”

“Há muita coisa em que temos de pensar e, quando conseguimos identificar tantos erros, é inevitável rever o modelo de funcionamento do MP”, afirma João Massano. “Tem de haver uma avaliação do que é efetivamente feito.”

Deveria haver “uma profunda reflexão do Ministério Púbico sobre o seu desempenho”

Essa é também, em parte, a opinião de António Cluny, procurador-geral adjunto e até recentemente membro nacional da Eurojust, que considera que certos casos judiciciais deviam “levar a uma profunda reflexão do Ministério Púbico sobre o seu desempenho” mas também a uma “autocrítica” do poder político sobre as leis produzidas.

“Já defendo há muito tempo que sempre que há um caso importante era essencial discutir internamente [no MP] e extrair dele as lições necessárias, tendo em vista aproveitar tais ensinamentos para processos futuros da mesma natureza”, disse António Cluny à agência Lusa, referindo que “a natureza do MP enquanto magistratura e nas condições dos inquéritos criminais tem a ver com a sua orgânica mais elástica do que a dos juízes”. “Os juízes são um órgão jurisdicional por si próprio, enquanto o MP pode constituir equipas de magistrados para investigar e acompanhar um novo processo”, precisou.

Cluny não referiu o artigo de Maria José Fernandes, mas é fácil encontrar nas nuas palavras pontos de ligação com o que escreveu a PGA. Em sua opinião, a “questão está em saber, quando há um insucesso, o que é que correu mal”: “Se analisarmos vários casos que não terão corrido bem, podemos chegar (ou não) à conclusão que as causas são as mesmas, assim como é importante tirar ensinamentos do processo que correram bem”. Para António Cluny, numa e noutra situação (de sucesso ou insucesso) há que procurar “aproveitar essa experiência” e os ensinamentos retirados para procedimentos futuros. “Essa é a grande riqueza que o MP tem de aproveitamento do conhecimento”, adiantou, notando que a Procuradoria-Geral da República (PGR) e as Procuradorias Regionais podem colher tais ensinamentos para novos processos da mesma natureza.

Em casos de “importância e de repercussão institucional”, como será o caso da operação Influencer, António Cluny defende que, “antes de os procuradores titulares do processo formularem pedidos ao juiz de instrução criminal (JIC) que envolvam medidas de coação gravosas dos direitos, liberdades e garantias, era importante encontrar uma solução em que alguém, magistrado e fora da equipa de investigadores, fizesse de ‘advogado do diabo’, colocando as dúvidas que pudessem suscitar, para que os próprios titulares do inquérito avaliassem se deviam continuar nesse caminho ou retificá-lo”.

Artigo tem “deficiência de argumentação” e “erros crassos”

Opinião bem distinta tem Adão Carvalho, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), que considera que o artigo de opinião da magistrada Maria José Fernandes sobre o MP tem “deficiência de argumentação” e “erros crassos” sobre a questão da autonomia desta magistratura, apresentando “uma visão singular e manifestamente não concordante pela quase totalidade dos magistrados do MP” e revelando alguns “vícios”.

Primeiro – observou, em declarações à Lusa – a magistrada apresenta “claras deficiências de argumentação e erros crassos sobre a questão que fala, quer sobre a posição do SMMP sobre a autonomia do MP, designadamente da autonomia interna, quer sobre as considerações que faz sobre o enquadramento de determinados tipos legais de crimes (recebimento indevido de vantagem)”. Outro aspeto criticado por Adão Carvalho resulta da “profunda deslealdade” manifestada no artigo pela magistrada, designadamente porque “sabe que os magistrados do MP, nomeadamente os responsáveis pela investigação que cita, estão sujeitos a um dever de reserva e nunca terão oportunidade de se defenderem publicamente”.

“Por outro lado, parece-nos que a procuradora está ela própria a violar esse dever de reserva, pronunciando-se sobre processos que ainda não estão findos” ou concluídos, sublinhou o presidente do SMMP. Nas palavras de Adão Carvalho, “num tempo em que já há muito burburinho e muita contra-informação na praça pública, é irresponsável que alguém que exerce funções no MP contribua ainda mais para o ruído”, tanto mais que internamente a magistrada podia sempre assumir a iniciativa de fazer “denúncias aos órgãos competentes do MP sobre quaisquer situações que considere anómalas ou incorretas”.

O dirigente do SMMP frisou que existem “formas de controlo jurisdicional dos atos praticados pelo MP no âmbito do próprio processo, onde esse controlo deve ser exercido, e que, no fundo, garantem que qualquer cidadão tem direito a um processo justo e equitativo”. E lembrou que os procuradores do MP que estão à frente do inquérito da Operação Influencer são “magistrados responsáveis, com reconhecida qualidade, e que estão a dar o seu melhor no exercício das competências que lhes estão atribuídas, mesmo num quadro de trabalho excessivo em que se encontram no DCIAP”.

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