Sobre um fascismo que nunca existiu, nem existe

Uma extrema-direita que alcança esta dimensão não é um epifenómeno, mas um fenómeno que tem uma história e uma tradição, e que ambas se encontram profundamente enraizadas em Portugal. Apenas assim conseguiremos decifrar o alcance e profundidade antidemocráticos do programa eleitoral do Chega

sobre um fascismo que nunca existiu, nem existe

Sobre um fascismo que nunca existiu, nem existe

As eleições de Março próximo prometem cimentar o Chega enquanto terceira força política em Portugal. Após anos em que muito se elogiou uma suposta imunidade lusitana à extrema-direita, eis que subitamente rebentam os diques da democracia e, enquanto uns tentam manter-se à tona, outros tantos, democratas convictos (segundo os próprios, e tão pluralistas que exigem a integração do Chega no panorama político nacional), navegam efusivamente este rio revolto e lodacento que nos submerge. Fundado em 2019, o Chega é um partido novo que ao mesmo tempo nos é estranhamente familiar, tanto no estilo como na doutrina. E é precisamente neste remoinho de oxímoros sibilinos, de uma ruptura que evoca uma tradição, que reside uma das forças propulsoras do Chega. Porque quando alguém ressuscita o “Deus, Pátria e Família”, fá-lo num contexto e, no caso português, está a convocar uma tradição histórica. Afinal, parece que o Chega sempre existiu.

Nas eleições legislativas de 2022, o partido de André Ventura arrecadou a sua maior percentagem de votos, quase um quinto do total (19%), no concelho de Elvas. Para melhor entendermos este fenómeno, teremos que retornar à nascente desse afluente, ou seja, aos primórdios do Estado Novo em Elvas, a 14 de Agosto de 1936.

Nesse dia, as forças do exército colonial espanhol comandadas pelo General Franco, protegidas por pendentes religiosos no peito, a aviação nazi alemã e fascista italiana pelo ar, e o Portugal de Salazar no flanco, ocupavam a cidade de Badajoz, que tinha permanecido leal à República democrática. Salazar não só autorizou que os ditos aviões utilizassem campos de aterragem portugueses, como também permitiu que a Alemanha traficasse armas para Espanha através de Portugal. O apoio material luso foi mais modesto mas proporcional à sua fragilidade militar, muito por culpa do ditador, obcecado em robustecer a sua autoridade à custa do aprovisionamento das forças armadas. Salazar solidarizou-se como pode: oferecendo vidas humanas. Neste caso, milhares de voluntários portugueses, que se alistaram no exército franquista, na sua maioria para escapar à miséria. Quando a extrema-direita exige “tudo pela nação”, significa mesmo “tudo”, e morreram centenas em Espanha, ficando outros tantos no país vizinho, mutilados, traumatizados e abandonados pelo Estado Novo.

A conquista de Badajoz foi célere e o que se seguiu não destoa com o que vinha sendo relatado a Salazar desde as primeiras semanas da guerra civil de Espanha. Obedecendo a ordens superiores, o exército colonial massacrou, pilhou e violou, incluindo nos degraus do altar da catedral de Badajoz, onde algumas pessoas buscaram refúgio. Na retaguarda, à espera da pacificação da cidade para depois tomar parte no massacre, estava a Falange, o partido fascista espanhol. A sua primeira acção foi converter o centro obrero em quartel: os mais pobres foram sempre as primeiras e predilectas vítimas do fascismo, que nunca toma prisioneiros. Assim sendo, todos os milicianos que se renderam aos invasores foram chacinados, incluindo os feridos dentro do próprio hospital. Largas centenas foram conduzidos até à praça de touros e ali fuzilados em grupos.

O processo demorou dias. Nos corrais da arena, que serviam agora de prisão, os vivos podiam ouvir os gemidos dos agonizantes. Tudo isto sabemos graças à coragem de vários jornalistas, sobretudo de um jovem repórter português, Mário Neves, que, não obstante o trauma, não deixou de relatar um “espectáculo de desolação e de pavor que não se apagará tão cedo dos meus olhos.” Neves deparou-se com um número tal de cadáveres semeados pelas ruas da cidade que o sangue começou a formar riachos. Um outro colega seu, Mário Pires, ficou de tal forma perturbado que teve de ser internado em Lisboa.

Nesse dia e nos seguintes, a população de Elvas foi-se apercebendo da formação de densas colunas de fumo vindas do cemitério de Badajoz, seguidas de um odor nauseante. Mário Neves presenciou a cena, descrita como “dantesca”, de centenas de corpos a serem atirados para valas comuns, encharcados em gasolina e incinerados. Estima-se que cerca de duas mil pessoas foram chacinadas em Badajoz, muitas das quais graças à colaboração do Estado Novo, incluindo alguns portugueses, que não seriam “de bem”.

Na fronteira, as autoridades lusas bloquearam a entrada a milhares de espanhóis enquanto caçavam e ofereciam aos franquistas aqueles que tinham conseguido introduzir-se em Portugal. A maior leva teve lugar a 18 de Agosto, dia em que quatrocentos refugiados foram entregues, dos quais quase três centenas seriam de seguida assassinados. Como gesto de gratidão, os franquistas permitiram que os latifundiários portugueses assistissem às execuções. Alguns dias mais tarde, um grupo de falangistas devidamente autorizado e escoltado por militares portugueses irromperam pelo hospital de Elvas em busca do governador civil de Badajoz, salvo pela intervenção do director que se lançou aos gritos para cima do seu paciente.

Noite após noite, os elvenses despertaram com as súplicas dos espanhóis capturados em rusgas e arrastados até à fronteira. Muitos outros, porém, foram protegidos pelos seus vizinhos portugueses que arriscaram incorrer, e não poucos sofreram, a ira do Estado Novo, que tão bem soube usar a pobreza, que preservava e sublimava, como arma. Num Alentejo onde os trabalhadores rurais consumiam apenas 72% das calorias diárias necessárias, uma prisão, multa, despedimento ou espancamento que deixasse sequelas bastava para condenar famílias inteiras à ruína. E mesmo entre aqueles que conseguiram evadir a vigilância da PVDE, a necessidade de partilhar o pouco que possuíam, era já de si uma condenação à fome. Beneficiando de um monopólio da força bruta, o Estado Novo podia dar-se ao luxo de liquidar pessoas sem ter de o fazer fisicamente.

Estes e outros episódios análogos foram censurados pelo Estado Novo e continuam, até hoje, mergulhados no mais profundo esquecimento. Mário Neves possui a estranha qualidade, talvez única, de ser um português mais conhecido em Espanha do que em Portugal. Talvez se o devido reconhecimento tivesse sido prestado à população de Elvas, convertendo assim uma memória colectiva em cultura histórica antifascista, fosse possível criar uma certa “imunidade” em relação à extrema-direita.

Contudo, e nos antípodas dos eventos de Elvas e Badajoz, todos nós já lemos e ouvimos, seja através de família, dos amigos, jornais, televisão ou até das dezenas de hagiografias em forma de livro, um ou mais dos seguintes encómios: Salazar era um ditador, sim, mas era também moderado, racional, inteligente ao ponto da genialidade, avesso à violência, incorruptível, um líder que nunca o quis ser mas que a isso se viu obrigado, um homem providencial que trouxe paz e prosperidade a Portugal. Feitas as contas, fomos uns afortunados.

Quem semeia ventos históricos, colhe tempestades políticas. Se hoje, por um lado, continuamos a ter uma franja neo-salazarista, por outro, e graças a décadas de despolitização, existe uma outra, bastante maior, que vislumbra em Ventura algo de novo e auspicioso, e o seu vago referente histórico é positivo: a de um regime de ordem mas suave, “uma mão de ferro calçada com uma luva de veludo”, como descreveu sarcasticamente Saramago n’O Ano da morte de Ricardo Reis.

Uma ditadura não dura cinco décadas por obra do acaso. Se Salazar se perpetuou no poder, foi porque conseguiu satisfazer os interesses da oligarquia social e económica durante várias gerações. A título de exemplo, a economia portuguesa cresceu 27% entre 1938 e 1946, enquanto sucessivas vagas de greves e tumultos rurais provocados pela fome eram duramente reprimidas. São os filhos e netos dessas elites que hoje cerram fileiras para salvaguardar a memória do seu regime. E tal foi o seu sucesso que já em 1976 Eduardo Lourenço perguntava: “que era, que foi o fascismo português para que, passados dois anos do seu hipotético fim, apareça já a muita gente com qualquer coisa que efectivamente nunca existiu?” A primeira de muitas hagiografias de Salazar seria publicada no ano seguinte pela mão do seu antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira, que hoje tem um edifício ostentando o seu nome na Universidade Lusíada, onde se tornou director do Departamento de História.

Neste país, onde a mitologia passa por história, onde tantos nostálgicos ocupam lugares proeminentes na sociedade e nos media, onde um partido “liberal” celebra o 25 de Abril aos gritos de “comunismo nunca mais”, comunismo esse que existiu e existe (ao contrário do fascismo), os mesmos fundos e exposição mediática que foram canalizados para reabilitação desse não-fascismo servem agora um outro projecto político. A simbiose é tão umbilical que alguns descendentes das elites do Estado Novo fazem hoje parte dos quadros do Chega. Felizmente, por nunca ter existido em Portugal, nada disto é fascista.

É tão claro como evidente que o não-fascismo é apenas um entre os muitos afluentes que vão alimentando este rio cada vez mais caudaloso e barrento que é o Chega. Mas importa sublinhar que uma extrema-direita que alcança esta dimensão não é um epifenómeno, mas um fenómeno que tem uma história e uma tradição, e que ambas se encontram profundamente enraizadas em Portugal. Apenas assim conseguiremos decifrar o alcance e profundidade antidemocráticos do programa eleitoral do Chega, que quer “limpar” a “podridão” e “dignificar a autoridade do Estado”, pois “durante 50 anos, os portugueses deram o seu voto sempre aos mesmos e nada mudou”. A não-referência às cinco décadas anteriores não é furtuita.

E que panaceia nos receita este partido em 2024? Muito simples: “uma limpeza ideológica” para acabar com o “preconceito ideológico”, o “enviesamento ideológico”, a “hegemonia ideológica” e o “condicionamento ideológico”. Só após alcançar esta “neutralidade” ou “imparcialidade ideológica”, é que o Chega poderá defender “o superior interesse dos cidadãos”, procurando ainda assim “eliminar os resquícios dos combates ideológicos dos anos 60 e 70”, tal como “manter referências ao período ‘fascista’”, com aspas, porque, como bem sabemos, este nunca existiu. Em suma, o Chega não é mais do que uma não-ideologia que ambiciona apenas pôr os portugueses a viver habitualmente. Ou isso ou então acreditar que devemos à Providência a graça de que, em séculos consecutivos, conhecêssemos dois génios não-fascistas. A bem da Nação.

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