“Muitas mulheres no mundo são violadas ou molestadas quando vão buscar água”

A economista Mariana Mazzucato vai estar, esta quinta-feira, no Fórum “O futuro da água”, um encontro promovido pelo BPI e do qual o Expresso é media partner. Professora em Londres, autora e membro da Comissão Mundial sobre a Economia da Água, esteve à conversa com Expresso sobre este tema que diz ser transversal a todos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas

“muitas mulheres no mundo são violadas ou molestadas quando vão buscar água”

A economista e autora Mariana Mazzucato

Porque é que a água é uma questão tão importante e quais são os principais problemas a resolver?

A razão pela qual a água é tão importante tem três vertentes. Em primeiro lugar, temos um ciclo hidrológico global que está desregulado e é por isso que estamos a assistir a uma quantidade crescente de cheias e do seu oposto, as secas. Em segundo lugar, exige uma ação coletiva global que não está a acontecer. E em terceiro lugar, é sistémico, ou seja, devemos olhar para a água como uma série de problemas que atravessam todos os Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU. Pensemos na paridade de género, o ODS 5, muitas mulheres no mundo são violadas ou molestadas quando vão buscar água. Ou o ODS 6, que é o mais óbvio, certo? O ciclo de lavagem, o saneamento e por aí fora. Mas também as alterações climáticas, o ODS 13, o ODS 14, a vida no fundo dos mares… não há quase nenhum ODS que me lembre, que não tenha uma vertente relacionada com a água.

Como avalia o papel dos governos na promoção de práticas sustentáveis no que respeita aos recursos hídricos e também na mitigação dos impactos da escassez?

O que defendo é que o Estado deve definir uma direção. O que não significa que o Estado faça tudo. Precisamos que o sector privado invista e inove, mas com uma direção clara, na qual o Estado também faça investimentos na fase inicial de alto risco e de capital intensivo. Os governos não devem limitar-se a pôr dinheiro aqui e ali, ou subsídios e garantias aqui e acolá, e depois rezar e esperar pelo melhor. O que eles precisam é de “moonshots” [projetos ambiciosos] que sejam realmente claros, como o programa Apollo [nos EUA] que tinha como objetivo chegar à lua e voltar. Os Governos precisam de transformar todas as alavancas de que dispõem – como os contratos públicos, as subvenções, as garantias, os empréstimos, os empréstimos públicos dos bancos públicos – para serem concedidos ao sector privado na condição de que ele invista em soluções para cumprir a missão, para a tal aterragem na Lua. Foi, por isso, que acabámos por ter telemóveis com câmara, cobertores de alumínio, leite em pó para bebés… tudo isto foram soluções apresentadas pelo sector privado para problemas definidos publicamente.

Mas não é assim, por norma, que os governos funcionam. Os governos de todo o mundo sofreram uma lavagem cerebral para pensar que, na melhor das hipóteses, o que fazem é reduzir o risco, facilitar, permitir, dar muito dinheiro, impostos, subsídios, etc. ao sector privado, o que, em última análise, apenas aumenta os lucros e não o investimento.

Em que áreas é que deveríamos assistir a essa orientação clara por parte do Governo para atrair o investimento privado necessário?

Desde logo, na inovação nos sistemas de armazenamento de água e na redução das enormes fugas nos sistemas de distribuição de água. Depois, na agricultura, por exemplo, com sementes resistentes à seca. Porque a agricultura é o maior utilizador de água e um utilizador extremamente ineficiente e todos os subsídios europeus ao sector deveriam estar condicionados à sua eficiência hídrica.

Em quarto lugar, na reciclagem das águas residuais industriais, porque cerca de 80% dessas águas não são recicladas e isso é uma loucura, especialmente quando pensamos nos direitos de água que são concedidos pelos governos ao sector privado, como à Pepsi-Cola ou à indústria da cerveja. A concessão de direitos de utilização da água deveria estar condicionada ao facto de esses sectores reciclarem 80% das suas águas residuais, em vez de apenas 20%.

E, em quinto lugar, temos de atuar rapidamente para garantir que a transição para uma economia de baixo carbono reduza, em vez de aumentar a pressão sobre a água. Por exemplo, o lítio, que é necessário para a eletrificação, para os automóveis Tesla, etc., é, na verdade, um método de extração muito, muito intensivo em água. E isto é o que estava a dizer antes sobre a necessidade sistémica, porque pode acontecer que se esteja a resolver um objetivo de desenvolvimento sustentável através da eletrificação – o objetivo das alterações climáticas, o ODS 13 –, mas ao fazê-lo com processos muito intensivos de extração do lítio está-se a poluir o ciclo da água e a utilizar demasiada água. É por isso que os ODS têm de ser analisados em conjunto.

Por fim, em sexto lugar, na dessalinização. A dessalinização pode ser uma solução poderosa para muitas regiões afetadas por secas graves e escassez de água, mas é preciso que os investimentos sejam feitos de uma forma que tenha realmente em conta a visão sistémica de que falava.

Considera que já existem bons exemplos de políticas e estratégias económicas bem-sucedidas nesta matéria?

Em todos os exemplos que acabei de dar, há coisas boas a acontecer, mas não o suficiente porque não estão em escala. Por exemplo, em Durban, na África do Sul, as fábricas de papel e as refinarias da cidade começaram a tratar e a reutilizar as águas residuais industriais, aparentemente, o equivalente a 13 piscinas olímpicas por dia desde 2001. Isto deve-se sobretudo ao facto de a África do Sul ter enfrentado um enorme problema de água. Outro bom exemplo é a central de dessalinização de Ashkelon, em Israel, que tem uma capacidade de produção de cerca de 100 milhões de metros cúbicos de água doce por ano. Está a fornecer uma parte significativa do abastecimento de água de Israel e ajudou a reduzir a dependência do país em relação às águas subterrâneas, que tinham sido bombeadas em excesso e estavam a levar ao esgotamento dos aquíferos.

Mas Israel é também um bom exemplo de como um problema geopolítico – o conflito Israel-Palestina, que é uma tragédia – acaba por ter a ver com a água. E a água vai ser e já é a fonte de guerras geopolíticas. Por isso, não só é um problema enorme para a humanidade que está a ser afetada – por causa dos dois mil milhões de pessoas que não têm acesso a água limpa e suficiente – mas também é a fonte de grandes guerras. E temos de reconhecer isso.

Na sua opinião, como é que os países podem cooperar mais eficazmente para garantir a segurança da água à escala internacional?

É uma ótima pergunta e é a pergunta da Comissão Mundial sobre a Economia da Água, da qual faço parte. Em primeiro lugar, não estão a cooperar. A água é um problema global que necessita de uma solução coletiva e global e ainda não existe um programa da ONU para a água. Penso que estão a prepará-lo e isso é muito importante, porque seria um bom sinal para o mundo de que não é possível atingir os nossos objetivos em matéria de água sem que esta seja tratada com seriedade, tal como aconteceu com o clima. Felizmente, o clima tem a sua conferência, a COP. Existem conferências sobre a água, mas ninguém as conhece. Quer dizer, nós sabemos que elas existem, mas nós somos nerds.

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