"Depois da vitória esperamos três milhões de veteranos", diz governo ucraniano

ANTÓNIO COTRIM/LUSA

Kiev, 21 fev 2024 (Lusa) – A Ucrânia terá três milhões de veteranos em resultado da invasão russa, estima a vice-ministra da tutela, estando a ser preparada nova legislação que apoie desde já centenas de milhares de combatentes na sua reintegração na vida civil.

Em entrevista à agência Lusa, Oksana Syvak, uma médica obstetra que encontrou a vocação política nos protestos Euromaidan, em Kiev há uma década, e logo a seguir na guerra no Donbass, leste da Ucrânia, dá conta de uma realidade em grande escala, que já existia antes da invasão russa, em 24 de fevereiro de 2022, e substancialmente agravada desde então.

“É preciso explicar que já tínhamos muitas pessoas na nossa base de dados desde 2014 [ano da eclosão da crise no Donbass] e que quase todos os veteranos são combatentes que regressaram ao campo de batalha após a invasão em grande escala da Rússia”, explica a vice-ministra para os Assuntos dos Veteranos.

Oksana Syvak não avança números alegando razões de segurança nacional, mas estão em causa centenas de milhares de pessoas, das quais uma parte diz respeito a militares diminuídos fisicamente, ou que sofreram traumas psicológicos profundos e já não podem lutar.

Estas pessoas “terminaram o seu serviço e entraram na vida civil e, naturalmente, os maiores problemas estão relacionados com a sua saúde física e psicológica”, segundo a governante, cujas projeções apontam para uma escala sem precedentes.

“Após a vitória, no final da guerra, esperamos três milhões de pessoas. Não se trata apenas de veteranos mas também as suas famílias”, adianta Oksana Syvak, comentando que “será um número enorme”, com os dados a indicarem que 31% estarão abaixo dos 30 anos, a precisar de alguma forma de apoio.

Além dos problemas de saúde, a política elenca o emprego e a habitação, quando, nesta fase, muitos se encontram na condição de deslocados, porque as suas casas ficaram destruídas em resultado da invasão russa, ou estão localizadas em regiões ocupadas pelas forças de Moscovo.

Este problema é inclusivamente sentido em Kiev, que permanece sob a mira dos bombardeamentos russos há dois anos, com estragos acumulados em edifícios residenciais e deixando vários combatentes sem morada.

Por outro lado, “assim que eles [veteranos] regressam, devem ter dinheiro para sobreviver e sustentar as suas famílias”, aponta Oksana Syvak, frisando um trabalho em curso com o Ministério da Educação e da Política Social no sentido de os alojar e também garantir um emprego.

A vice-ministra foca ainda que devido ao estado físico ou traumas psicológicos destes veteranos, “alguns deles, claro, perderam capacidades”, sendo necessário requalificá-los “para terem novas competências e encontrarem outros empregos”, envolvendo-se igualmente as empresas e a tarefa de lhes explicar a importância de adaptar esta força de trabalho tão diferenciada.

“Temos de compreender que os nossos soldados e os nossos veteranos não vêm carreira militar. Trata-se de professores, economistas, o que quer que seja, que não tinham de todo o sonho construir esta carreira”, adverte a vice-ministra, destacando que é preciso “dar-lhes tempo para voltarem a compreender a vida civil e integrarem-se”.

O trabalho a desenvolver acaba portanto por ser individual com cada um dos veteranos, atendendo à particularidade de cada um, em que, por exemplo, empresas indicam quais as competências que precisam – e algumas até se oferecem para as garantir -, e noutros casos o Governo encaminha os combatentes para universidades ou outros locais de ensino para receberem formação adequada.

“Todos devem compreender que muitas pessoas voltarão e que precisarão de emprego, um sítio para viver, bons serviços de saúde, apoio psicológico e tudo o que é preciso para favorecer um ambiente inclusivo”, refere, contrariando o princípio de se pagar um subsídio e “nunca mais ninguém se preocupar com elas”.

Apesar de o Ministério que integra ter sido criado há pouco tempo, em 2018, está em curso uma revisão da legislação, segundo a vice-ministra, que contemple esta nova realidade imposta pela guerra: “Queremos que as pessoas compreendam os seus direitos e os seus benefícios, e quem é responsável pelo quê, porque este trabalho não é apenas nacional, é transversal às comunidades locais”.

Nos planos do Ministério, prossegue Oksana Syvak, estão previstos 107 centros de apoio a veteranos no país, mas metade existe apenas no papel devido à falta de fundos, “e muitos outros estão desatualizados” para a abordagem que se pretende e perante um cenário em que nem todos têm as mesmas necessidades: “Uns precisarão de casa, uns de emprego, outros de apoio psicológico, e outros ainda de tudo um pouco”.

Para isto, a vice-ministra alerta que a Ucrânia precisa de ajuda, “porque, financeiramente não é suficientemente forte e é conhecida a situação atual”, tendo recebido com a satisfação a aprovação do financiamento de 50 mil milhões de euros da União Europeia (UE) a Kiev, e a possibilidade de dedicar parte desse pacote aos veteranos. Ainda assim, e apesar de os contactos já terem sido iniciados com as instituições comunitárias, “não é suficiente”.

Ao fim de dois anos de guerra, a governante reconhece que não só os veteranos mas a população no seu todo “apresenta cansaço físico e mental”.

Quando dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) preveem que um em cada quatro ucranianos enfrentará um distúrbio psicológico, a resposta da vice-ministra expressa firmeza: “Mas não há outra hipótese” a não ser combater a Rússia.

No fundo, vinca, “é uma luta de uma sociedade inteira”, em que todos “têm a responsabilidade de participar em qualquer atividade, mesmo longe da primeira linha dos combates”,tornando cada um dos cerca de 40 milhões de ucranianos num veterano em potência.

Mais não seja porque cada família tem alguém na frente ou já experimentou uma perda, como se atesta no átrio do Ministério para os Assuntos dos Veteranos, onde estão expostos retratos de soldados tombados e flores em sua homenagem, um cenário frequente nos edifícios públicos do país.

Oksana Syvak é uma obstetra e ginecologista que assumiu uma participação ativa na Revolução da Dignidade, há uma década na praça Maidan, no coração de Kiev e muito perto do local onde agora trabalha em funções governativas.

Logo após os protestos que ficaram conhecidos como EuroMaidan e que afastaram o Governo pró-russo, começou a guerra no Donbass quando a médica chegou à conclusão de que “não podia ajudar os soldados feridos na maternidade” e mudou-se para a área de traumatologia.

“Em 2015, apercebi-me de que na Ucrânia temos muitos bons cirurgiões e traumatologistas, mas não um bom sistema de reabilitação”, recorda, contando que, em cinco anos (em que chegou a ocupar cargo de vice-ministra da Saúde), começou a trabalhar com outros colegas e a recolher experiências nos Estados Unidos e noutros países europeus e foi possível abandonar “velhas práticas de estilo soviético”.

Oksana Syvak fala com “muito orgulho” deste legado e também de outro que encetou de remodelar a saúde mental, face à proliferação de traumas psicológicos, marcando o ano de 2014 em que começou a abandonar a prática de medicina e a abraçar “uma nova família”, a dos veteranos: “Compreendo a sua cultura e as suas necessidades e estou aqui para ajudá-las. Esta é a minha história”.

*** Henrique Botequilha (texto) e António Cotrim (fotos), enviados da agência Lusa ***

HB // SCA

Lusa/Fim

News Related

OTHER NEWS

Região de Lisboa, Alentejo e Algarve sob aviso amarelo na 5.ª feira por causa da chuva

Tiago Petinga/LUSA Lisboa, 27 nov 2023 (Lusa) – Lisboa, Setúbal, Évora, Beja, Portalegre e Faro vão estar sob aviso amarelo a partir da madrugada de quinta-feira, devido à previsão de ... Read more »

Primeiro-ministro britânico vai recusar devolver à Grécia mármores do Partenon

Chris Ratcliffe / POOL/EPA Londres, 27 nov 2023 (Lusa) – O primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, vai recusar devolver à Grécia os mármores do Partenon, guardados no Museu Britânico, em Londres, ... Read more »

"Tchau Chico!": médio do FC Porto 'desorientado' à entrada do avião rumo a Barcelona

O futebolista de 20 anos entrou no local errado no interior da aeronave, e não se livrou de algumas brincadeiras dos colegas de equipa. “Tchau Chico!”: médio do FC Porto ... Read more »

Bastonário dos médicos lança apelo ao ministro e à Direção Executiva do SNS

Carlos Cortes, Bastonário da Ordem dos Médicos. Foto: DR O bastonário da Ordem dos Médicos apelou, esta segunda-feira, ao ministro da Saúde para ouvir estes profissionais e ponderar “com seriedade” ... Read more »

Clima: Mar gelado da Antártida recuou em setembro 1,5 milhões km2 homólogos

Antártida (EPA/Alberto Valdes) A superfície gelada do mar na Antártida retrocedeu em setembro 1,5 milhões de quilómetros quadrados em termos homólogos, revelou esta segunda-feira o secretário-geral da ONU, António Guterres, ... Read more »

MotoGP: Miguel Oliveira mantém 88, mas ainda se desconhece a equipa

A DORNA divulgou também alterações aos regulamentos, de forma a permitir concessões de evoluções à Yamaha e à Honda, os dois construtores japoneses que se viram suplantados pela Ducati. MotoGP: ... Read more »

Blackstone está de olhos postos na compra de imóveis na Europa

Steve Schwarzman, fundador e CEO da Blackstone A gigante norte-americana Blackstone já tem vários negócios imobiliários na Europa e em Portugal. E deverá reforçar o seu investimento em breve. Isto ... Read more »
Top List in the World